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Da sedução à palavra – Ladário: História e memória de uma cidade colonial (1873-1953)




Saulo Álvaro de Mello*

Raros acontecimentos brilham tão fortemente em nossa história como o processo de ocupação do extremo Oeste do Brasil. 


O projeto pombalino, executado pelos luso-brasileiros, no sentido de avançar rumo às terras castelhanas resultou na ampliação da colônia portuguesa em cerca de mais de dois terços do território brasileiro. Os caminhos fluviais, como o rio Paraguai, o rio São Lourenço e o rio Cuiabá, percorridos pelo bandeirante Pascoal Moreira Cabral, permitiram o acesso ao estratégico lugar onde se assentou Cuiabá e possibilitou a ocupação e o povoamento rápido de Mato Grosso (BRAZIL, 1999, p. 120).


O projeto de colonização portuguesa envolvendo ocupação, povoamento e segurança dos espaços lindeiros de Mato Grosso redundou no surgimento de algumas cidades coloniais, como Diamantino, Vila Bela, Cuiabá, Cáceres, Corumbá, Ladário, Miranda, entre outras. Foram cidades que nasceram para atender ao plano geoestratégico da política portuguesa, sob as estritas “Instruções” da Coroa metropolitana.


O historiador Ilmar de Matos explica que os monopólios controlados por colonizadores e colonos tinham seu ponto de interseção na cidade colonial. (MATTOS, 2004, p. 40). Pelas explicações desse autor é possível aferir que Ladário, assim como outras cidades surgidas no mesmo período, representou um modelo típico de cidade colonial por ter assumido funções de porto, de defesa e, por vezes centro administrativo, caracterizando, dessa forma, o poder do colonizador e, mais tarde expressando o prolongamento do plano estratégico de poder perpassado tanto no Império como na República. Defendemos a importância da cidade no quadro da colonização, tanto como produto da exploração agrária que ela assumiu, como expressão do poder metropolitano. De acordo com Caio Prado Júnior, mesmo as vilas e as câmaras municipais tiveram sua importância, já que elas representavam o prolongamento do poder de um Estado Colonial, portanto, instrumentos do poder político das classes dominantes locais (PRADO JUNIOR, 1961, p. 28).

Apesar da considerável produção historiográfica sobre a História de Mato Grosso, a cidade de Ladário ficou relegada ao esquecimento. Poucos estudiosos elegeram a cidade como cenário ou objeto de suas obras ou, ainda, como campo de indagação histórica. A maioria dos textos sobre a história Mato-Grossense, ao abordar o município de Ladário, limitou-se ao período de sua fundação em 1778, por conta da política geostratégica de ocupação lusitana, e ao período de sua emancipação político-administrativa, em 1954.

Essa observação além de garantir a existência de uma grande lacuna histórica a ser trabalhada pelos historiadores locais traduz também a impressão de que a cidade foi vítima da estagnação econômica, explicada pela indiferença política, causadora da inexpressiva participação de seus habitantes no cenário histórico Mato-Grossense. Propomos buscar explicações para esse esquecimento ou silêncio à luz das reflexões de pensadores como Halbwachs, Pollack, Pierre Nora, Le Goff, Dubby, entre outros, que discutiram a difícil questão da subjetividade e da objetividade, sobretudo no sentido ponderativo e seletivo no uso da memória.


Sublinhamos ainda o emudecimento historiográfico em torno das particularidades desse espaço urbano, sobretudo na composição da identidade da nação brasileira, bem como a falta de estudos sobre o papel da instalação do Arsenal de Marinha na localidade de Ladário, em 1873.


Com base nas reflexões de Paul Singer (1972, p.4) entendemos que o município de Ladário ao sediar o Arsenal de Marinha de Ladário, ganhou um status político nacional e regional, antes indiscutível condão de Cuiabá, capital da Província de Mato Grosso. Apesar da importância desse episódio poucos estudiosos se debruçaram sobre as questões que envolveram a história de uma cidade despontada no período colonial, juntamente com Corumbá, mas que assumiu uma forma distinta de organização da vida material e social. Nos primórdios de sua colonização Assentou-se como porto, retiro de pescadores e suporte agrícola para Nossa Senhora da Conceição de Albuquerque (Corumbá), fundada em 1778, portanto no mesmo ano que Ladário.


É lógico que a historiografia precisa prestar contas sobre o papel exercido pelo deslocamento do Arsenal da Marinha de Cuiabá, fundado em 1825, para o núcleo urbano de Ladário logo depois da Guerra contra o Paraguai. O historiador tem a necessidade de explicar também o processo histórico de uma povoação que, de um simples retiro de pescadores, passou à condição de freguesia (1896), sub-município (1948) e, finalmente transformou-se em município (1953).


Como espaço histórico onde se movimentaram homens e mulheres que viveram as tensões e as lutas cotidianas durante o processo de ocupação, povoamento, disputas territoriais e guerra e que por isso impôs a concentração de uma das principais forças de defesa da nação brasileira, Ladário merece figurar entre as cidades que ajudaram a projetar Mato Grosso na História do Brasil. A idéia de movimento é contra o imobilismo - antítese da história (LE GOFF, 1993), assim sendo, o conhecimento humano deve se mexer, progredir, não deve parar (BLOCH, 1993). Para demonstrar essas tensões e lutas é necessário desnudar a memória subterrânea a que a cidade foi submetida, dando voz a essas culturas que foram subalternizadas – negros e operários.


O estudo da evolução de uma cidade como Ladário, por exemplo, implica na revisão da historia de ocupação do extremo oeste brasileiro. Conforme, Paul Singer, do ponto de vista político, as mudanças na estrutura do poder se dão a partir de tensões e lutas que, se não se originam na cidade, nela desembocam inevitavelmente. Em relação à cidade, não nos referimos à política limitada ao apenas no âmbito municipal, mas a todo o espaço brasileiro.


Desde 1733 os regimentos da realeza ibérica expressavam a necessidade de avaliar os registros topográficos como um“ seguro método de estudo” a ser utilizado pelo secretário do Rei no processo de configuração dos limites do Brasil. As antigas disputas luso-castelhanas pela posse da região sul da Capitania de Mato Grosso justificavam um projeto colonizador de se construir uma base militar de defesa contra os intentos castelhanos de ocupar a região e coibir as investidas dos paiaguá, os quais, na avaliação dos colonizadores portugueses representavam o grande entrave para a ocupação do sul de Mato Grosso. Os paiguás, povo de origem Guaicuru, nas palavras de Maria de Fátima Costa, eram senhores do rio e, “ Como prova disso ofereciam uma valente resistência aos que desde Caboto, ultrapassavam suas fronteiras” (COSTA, 1999, p. 48-9). Essa resistência representava um perigo à navegação nos rios de Mato Grosso, daí a urgência da instalação de praças fortificadas. A ocupação deste espaço só veio a ocorrer com a construção do Real Presídio de Nova Coimbra, em 1775, cujo efeito foi além de determinar a pacificação dos nativos guerreiros na área sul da Capitania, garantiu, mais tarde, a livre navegação no Rio Paraguai.


Foi nesse quadro que para cumprir as Instruções ditadas pela Coroa Portuguesa que o quarto Capitão-General de Mato Grosso, Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, “semeou”, no dizer do sociólogo Gilberto Freyre, um povoado, em 2 de setembro de 1778, para abastecer a retaguarda do Presídio de Nova Coimbra (FREYRE, 1978, p. 138). Segundo a historiadora Sul Mato-Grossense Maria do Carmo Brazil: “[...] era o início da fundação dos povoados albuquerquinos com a intenção de impedir o acesso dos castelhanos às partes vulneráveis da fronteira e de consolidar a posse lusitana na Colônia. Na visão do falecido historiador mato-grossense Virgílio Corrêa Filho, o capitão-general Luiz de Albuquerque ‘forcejava por dilatar a margem direita do rio Paraguai’.” ( BRAZIL, p.120-130).


O povoado ficou sob o comando de João Leme do Prado, um dos emissários da Capitania de Mato Grosso. Pelo aspecto geostratégico, as “barrancas da jusante do canal dos Tamengos” foram escolhidas pelo capitão-general. Mas, por sua natureza calcária, o solo era impróprio para plantações, aspecto que levou Leme do Prado a instalar-se, desde o início, no lugar a cerca de 6 Km da jusante, e o batizou com o nome de Ladário.


Em 21 de setembro do mesmo ano foi realizada a fundação do povoado de Nossa Senhora da Conceição de Albuquerque para atender a escolha do Capitão General. Entretanto, as atenções administrativas voltaram-se para o novo núcleo, que tinha a função de abrigar a tropa de defesa da praça militar, deixando o povoado de Ladário abandonado. 


Por quase 100 anos, 1778-1873, a história do antigo sítio urbano permaneceu encoberto pelo manto da presença viva e importante da praça militar de Albuquerque (Corumbá). Assentado à margem direita do rio Paraguai, como simples arraial ribeirinho de pescadores até o fim do conflito com o Paraguai, Ladário só ganhou a atenção das autoridades imperiais quando o Ministro da Marinha, Dr. Joaquim Delfino Ribeiro da Luz, com base num documento oficial de 7 de janeiro de 1873, determinou providências para as obras necessárias á instalação do Arsenal de Marinha que seria transferido de Cuiabá para Ladário. Segundo o Histórico da Base Fluvial de Ladário (1972), todo o material existente nos antigos arsenais de Cuiabá e do Cerrito foi transferido para Ladário, inclusive centenas de operários foram também deslocados para executar os trabalhos de edificação do novo Arsenal. (FONSECA, 1880, p. 299).


De quadro demográfico restrito, o lugarejo criado durante o período colonial abrigou em 1873 um conjunto edificado, com armazéns, oficinas, enfermaria, dependências para fabricação e guarda de munições e petrechos de guerra, promovendo assim a alteração do espaço e das relações sociais. A partir daí, Ladário incluiu-se no rol de agrupamentos urbanos que sediou uma das forças armadas do Império, cujo poder devia ensejar sua sobreposição à área muito mais vasta que seu próprio entorno.


Mesmo com o notável progresso proporcionado pelo novo Arsenal que assumiu a função de construir e reparar as diversas embarcações a partir de 1878, paradoxalmente, esse acontecimento de grande êxito e tamanha envergadura permaneceu esvaziado de seu sentido histórico pelas representações do passado. Sequer ganhou lugar de destaque nas páginas das crônicas e narrativas. Conforme o General Raul Silveira de Mello:

Seja dito de passagem, que, nem Luis d’Alincourt, nem Beaurepaire Rohan, nem Francis Castelnau, nem Joaquim Ferreira Moutinho, nem Bartolomeu Bossi, que excursionaram pelo sul de Mato Grosso, de 1822 a 1862, nenhum deles fez a mínima alusão a Ladário” (MELLO, 1966, p. 94).

Por muito tempo as ações dos atores sociais e a brumosa imagem do núcleo fugiram dos olhares dos viajantes, narradores, comentaristas, memorialistas e dos agentes oficiais. Rara exceção foi à obra do General Médico João Severiano da Fonseca – “Viagem ao redor do Brasil (1875-1878)”, quando da sua passagem pela região registrou:

[...] Em 1876 calculava-se a [população] da villa [Corumbá] em cinco ou seis mil habitantes, incluindo a povoação de Ladário (...) o Ladário converteu-se também n’uma florescentíssima povoação, com cerca de três mil almas, varias ruas e boa casaria” (FONSECA, 1880, p. 299).


Não seria lógico que com o exercício de poder, ensejado pelo uso de aparelho administrativo e das forças armadas, o arraial ladarense, ao promover a reunião de um significativo corpo de funcionários, civis e militares criasse as condições hegemônicas na região?


Na obra “1910: A Revolta dos Marinheiros”, o historiador rio-grandense Mario Maestri lembra que o período escravista transferiu aos primórdios da República brasileira as concepções eugênicas e aristocráticas da oficialidade monarquista promovendo a abertura de uma fenda entre “superiores” e “inferiores”:

[...] no passado, devido ao desprezo senhorial pelo trabalho manual, a manutenção e manobra dos navios eram efetuadas pelos estratos sociais mais humildes [...] a Marinha Brasileira do Primeiro e do Segundo Império viveu imersa nessa realidade. Parte das tripulações de seus navios era constituída de escravos, senão de populares arrolados à força”. (MAESTRI, 1982, p.24).


Constitui o ponto de partida desta investigação saber se a forma de recrutamento ou composição das fileiras da Marinha Brasileira também teria instituído a mesma a orientação nos diversos espaços geográficos e tempo. Se isto se confirma, resta revelar que circunstâncias concorreram, seja na conjunção de fatores internos e externos, para impedir a escrita sobre os sucessos do Arsenal da Marinha em Mato Grosso. Nossa hipótese é que por trás da igualdade formal do mercado formado com o advento do Arsenal de Ladário , se escondia a discriminação da propriedade, as desigualdades e restrições que asseguravam o privilégio social da oficialidade da armada naval, cujos membros , oriundos das grandes famílias de proprietários de terras. Ao constituir-se por voluntariado, escravos, recrutas engajados à força e trabalhadores humildes o Arsenal também teria recebido as orientações oficiais e derivativas que se materializaram no contexto da luta de classes e nas inúmeras e complexas determinações sociais, econômicas, políticas e culturais do sítio urbano de Ladário.

Como já nos referimos grande parte dos escritos sobre o Arsenal de Marinha de Mato Grosso, instalado em Cuiabá em 1827 e transferido para Ladário em 1873, ficou circunscrita aos documentos militares, como “Avisos Militares”, ordens de serviço e documentos internos.


No ano de 1825, o Presidente da Província de Mato Grosso Coronel Saturnino da Costa Pereira, cumprindo determinações da Secretaria da Guerra, através das Portarias de 14 de abril e 7 de junho, ordenou a construção de seis barcaças canhoneiras, que substituíram as canoas utilizadas nos transportes de homens e materiais desde as monções. As longas e largas canoas usadas pelos monçoeiros nos primórdios da ocupação de Mato Grosso foram gradativamente sendo substituídas pelas embarcações mais velozes e seguras, construídas após a instalação do Arsenal de Marinha de Mato Grosso em 1827. O desenhista da expedição de Grigory Ivanovith Langsdorff , Cônsul Geral da Rússia no Brasil, registrou em suas memórias de viagem: “ Vi em Cuiabá lançarem à água um barco de quilha, do tamanho de uma lancha de nau de guerra (FLORENCE, 1977, p. 100). Hercules Florence estava se referindo a uma das seis barcaças canhoneiras descritas acima.


As barcaças restantes foram construídas após a intervenção do Presidente da Província de Mato Grosso José Antonio Pimenta Bueno, que solicitou ao Governo Imperial através de ofício datado de 30 de setembro de 1837 recursos para a ampliação do Arsenal de Marinha e término da construção das mesmas.


Sempre com a idéia de transformar o Rio Paraguai em eficiente meio natural de transporte, o governo brasileiro encarregou João Augusto Leverger, Capitão de Fragata da Marinha Brasileira, para o comando da Primeira Força Naval de Mato Grosso e também dirigir o Trem Naval de Mato Grosso, em 6 de maio de 1843, formado pelo conjunto arsenal/canhoneiras/Cia de Imperiais Marinheiros, onde seriam construídas as embarcações, com vistas a oferecer maior segurança à tropa, aos gêneros de primeiras necessidades e aos equipamentos transportados, agilizando os transportes, além de consolidar a presença militar no Rio Paraguai.


Em meio à escassez de recursos, mais tarde, já como Presidente da Província, Leverger declarava as dificuldades financeiras pelas quais passava a região, constantes no Relatório da abertura da Assembléia Legislativa Provincial em 10 de maio de 1851.

(...) a mineração esta quase completamente extinta: não que se tenham exaurido minas, mas sim por que a extração de ouro, que antes encontrava-se nas camadas superficiais do solo, depende agora de maior trabalho e exige, para ser profícua, industria, capitais e braços ou instrumentos que não temos (RELATÓRIO DOS PRESIDENTES DE PROVÍNCIA, 1851, p. 12).


As dificuldades econômicas e o descaso com a região permaneceram.

A construção de apenas duas barcaças, das seis autorizadas pela Secretaria da Guerra, era resultado da falta de homens, materiais e recursos financeiros advindos pelo decréscimo da atividade aurífera, cujas “[...] rendas não mais davam para sustentar a administração, nem os serviços públicos mais urgentes” ( MELLO, 1966, p. 124) necessárias à região. Conforme o historiador Paulo Roberto Cimó Queiroz, a região era dotada de “um débil aparato estatal” e o descaso das autoridades para com a região teria contribuído para o atraso nas construções (QUEIROZ, 2003, p. 20).


O reaparelhamento do Trem Naval de Mato Grosso, formado em 6 de maio de 1843, passou a ser prioridade de seus comandantes, mas pouco pode fazer, pois ainda dependiam de recursos e das autoridades imperiais. As dificuldades enfrentadas pelo Arsenal de Marinha de Mato Grosso, motivou sérias discussões em torno de sua transferência para Corumbá ou Ladário, defendida pelo Ministro dos Negócios da Marinha João Mauricio Wanderlei. Os motivos que levaram a decisão da transferência do Arsenal estavam ligadas ao crescimento econômico pelo qual passava a região sul da província, principalmente Corumbá, conforme Paulo Roberto Cimó Queiroz, a “ vila de Corumbá mostra crescente importância econômica como pólo de comércio de importação e exportação da província, ligado, por via fluvial, a vários dos principais núcleos urbanos da região ( Cuiabá, Cáceres, Coxim, Miranda, Aquidauana)” (QUEIROZ, 2003, p. 25).


Na primeira metade do século XIX, a Província de Mato Grosso foi abandonada pelo Governo Estadual em virtude da crise na mineração que fez diminuir as rendas estaduais. Esse abandono facilitou a ação das forças paraguaias que invadiram a Província, após o início das beligerâncias envolvendo o Império Brasileiro e a República do Paraguai.

Em 1856 com o franqueamento da navegação no Rio Paraguai, surgiu pela primeira vez a idéia da transferência do Arsenal de Marinha de Mato Grosso, sediado em Cuiabá, para Corumbá ou Ladário, sendo escolhido o segundo. As obras civis para a instalação do novo arsenal, trouxeram ao povoado de Ladário centenas de trabalhadores, possibilitando o arruamento e a construção de moradias.

A Guerra do Paraguai 1864-1869 veio comprometer os planos da transferência do Arsenal, revelando o descaso imperial com a região, aspecto que já havia tornado o espaço bastante vulnerável à invasão paraguaia. Os paraguaios penetraram na Província de Mato Grosso com facilidade, parecendo mais um treinamento do que uma invasão “ em Corumbá os paraguaios tomaram um botim de imenso valor” (DORATIOTO, 2000, p. 106). Ainda para o memorialista Lécio Gomes de Souza, a invasão paraguaia deixou morte e destruição na cidade “ Corumbá, jazia deserta, as casas comerciais saqueadas, os edifícios públicos arrombados, muitos prédios incendiados. Tudo era desolação e miséria” (SOUZA, s.d. p. 64).


As impressões sobre as conseqüências da guerra, falam apenas da destruição causada em Corumbá, mas é óbvio que a povoação de Ladário também foi atingida pelas beligerâncias entre o Império Brasileiro e a República do Paraguai. A esquadra paraguaia, após sua passagem pelo Forte de Coimbra a 28 de dezembro de 1865, aporta em Ladário, conforme registro de seu Comandante Pedro Inácio Meza “ [...] que a frota de seu comando fundeou em Ladário às 14 horas e 3/4 do dia 3 de janeiro de 1865 e ali fêz porto” ( apud MELLO, 1966, p. 94). Ao chegar em Ladário, nas proximidades do Porto do Barrote, os paraguaios encontraram o porto abandonado. O assunto da mudança do arsenal só foi de rediscutido com o término das hostilidades.


A partir de 1870 o tema “transferência do Arsenal” foi retomado com certa prioridade, pois a internacionalização das águas do Rio Paraguai pelo Império Brasileiro como forma de alavancar o comércio e o desenvolvimento da região, necessitava de vasos de guerra e efetivos militares capazes de proteger os comboios de cargas e passageiros.


Assim, através do Aviso de 7 de janeiro de 1873, do Ministro dos Negócios da Marinha, Joaquim Delfino Ribeiro da Luz, foram autorizadas as providências para a construção e transferência do Arsenal de Marinha de Mato Grosso para o porto de Ladário, que foi preferido em relação à Baía do Tamengo, em Corumbá. O Capitaõ de Fragata Manuel Ricardo Cunha Couto, encarregado das obras do arsenal, elaborou o projeto das primeiras edificações orçadas em 417:000$000 ( Quatrocentos e dezessete Mil contos de réis).


Ainda de acordo com o Coletor Capitão Miguel Paes de Barros, em relatório enviado no ano de 1879 ao Comandante Pimenta Bueno, descreveu a quantidade de casas existentes em Corumbá e Ladário sujeitas ao pagamento de décimas urbanas (IPTU), “ [...] casas cobertas de telha 251, em construção 43, casas cobertas de zinco 29, em construção 7 “. Citando ainda o Arsenal de Marinha. “ Depois da guerra edificaram-se os suntuosos edifícios do Arsenal de Marinha no Ladário [...] O Arsenal do Ladário ocupava então centenas de operários, que para ali tinhão ido com seus agregados de família” ( FONSECA, 1880, p. 299).


Portanto constata-se que as citações e PAES DE BARROS (1879) e FONSECA (1880) referentes a Ladário, são posteriores a 1873, data da fundação do arsenal e Raul Silveira de Mello, (1966, p. 94) cita que no período de 1822 a 1862, os viajantes que passaram pela região não fizeram alusão a Ladário.. Dessa forma, fica claro que a povoação de Ladário só ganhou expressão após a instalação do Arsenal de Marinha.


Os investimentos realizados com as obras civis e instalações militares levaram à região centenas de trabalhadores que se instalaram na povoação de Ladário, surgindo assim o arruamento das principais vias de acesso, conforme planta elaborada por João Severiano da Fonseca, 1880, p. 293, quando da passagem pela região. Construiu-se também uma estrada ligando o arsenal ao porto de Corumbá, moradias para os operários e instalação das primeiras casas comerciais.


A Freguesia de Ladário a partir do primeiro quartel do século XX passou a sobreviver quase que exclusivamente em função do Arsenal de Marinha de Ladário. Ao aproveitar centenas de trabalhadores civis e militares a base militar tornou-se o maior empregador da região. As famílias ladarenses formadas em sua maioria por operários do arsenal, passaram a vê-lo como uma das poucas alternativas de emprego e renda.


A partir de 1948 com a elevação da Freguesia de Ladário em Sub-Município de Corumbá, surgiram os primeiros debates sobre a necessidade de sua emancipação político-administrativa, fato este que se concretizou em 1953.


A cidade de Ladário, fundada no período colonial, mas urbanizada e povoada no Segundo Império, se insere no modelo de cidade colonial, considerando que “[...] cidade colonial era guarnecida de edificações religiosas, prédios públicos e fortalezas. Essa arquitetura representava a coerção da cruz e da espada, do poder colonizador da Igreja e do Estado” ( RAMINELLI, 1997, p. 201).


A presença, portanto de uma fortaleza naval (Arsenal de Marinha de Ladário) autoriza considerarmos o antigo sítio como cidade colonial digna de ser significativo objeto do ofício permanente do historiador em estudá-la com o rigor científico que merece. (ARIÉS, 1993, p. 160).


Para dar conta da problemática levantada e dar historicidade ao objeto que elegemos para investigar procuraremos aproximação da verdade histórica, tentado desmontar mitos e tradições forjadas em detrimento dela. Conforme lembrou o historiador francês Georges Duby, a função do historiador reside justamente em se extenuar na perseguição da verdade, mesmo sabendo que esta é uma presa que comumente nos escapa. Mas isso não significa que deixaremos escapar a essência da realidade, que é a mudança incessante, a transformação verificada ao longo do tempo em suas multiplicidades. Ladário, o lugar que, durante o passado colonial, foi um simples espaço para dar suporte agrícola à praça militar de Albuquerque (Corumbá), experimentou significativas modificações ao longo do tempo, mas não ganhou o esforço dos estudiosos no sentido de desvelar a compreensão dos significados ocultos e profundos do seu universo social e material. E é essa escrita que pretendemos fazer, definindo as relações do geral com o particular em sua concretização histórica. Para alcançar o sentido do desenvolvimento histórico, considerando sempre a realidade dos movimentos e das transformações ocorridas.


Analistas como Halbwachs, Pollack, Pierre Nora, Le Goff, Dubby, mostram em seus trabalhos que existe uma espécie de fronteira entre o dizível e o não dizível e para Jacque Le Goff a disputa pelo poder com a finalidade de esclarecê-la ou não.

[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta de forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominam as sociedades históricas”. (LE GOFF, 1990).


Conforme nos ensina Le Goff, os esquecimentos e os silêncios da história podem ser frutos de mecanismos de manipulação da memória coletiva. Daí a necessidade de estudar e revelar porque a história da cidade que elegemos como objeto de estudo permanece submersa nas zonas dos silêncios e dos não-ditos sempre a espera de quem venha se debruçar sobre o abismo de um passado ainda não explicado ou quase desconhecido.




Considerando que “ [...] o objeto da história é atureza o homem”, no tema proposto “História e Memória de uma cidade colonial: o papel do Arsenal da Marinha nas alterações da vida material e social de Ladário (MS) - 1778-1954” , a ação dos homens como elemento chave na modificação do espaço será analisado à luz das reflexões de Marc Bloc:

[...] por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, [os artefatos ou as máquinas,] por trás dos escritos aparentemente mais insípidas e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que a criaram, são os homens que a história quer capturar” ( BLOCH, 2001, p. 54).

Os homens e mulheres que participaram do passado mais recente da história de Ladário dispõem de fonte abundante rica de lembranças, de documentos íntimos, como fotografias, cartas, bilhetes, cartões, livros caixas e objetos materiais biográficos e autobiográficos. Verdadeiras relíquias, estes materiais revelar aspectos da vida cotidiana ou fatos vividos de forma individual ou coletiva que podem contribuir no resgate das relações sociais. Os escritos de Pollak e Frentess poderão orientar na interpretação da memória coletiva e da colonização, ocupação e transformação do núcleo urbano de Ladário, contribuindo para a compreensão da idéia de identidade local articulada à identidade nacional.


Estas questões evocam historiadores a penetrarem nos múltiplos caminhos do tempo e tomar o pequeno povoado colonial como objeto de estudo, desvendar seus segredos e perseguir seu sentido e significado no âmbito da história brasileira.


* Mestre em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail: sauloamello@yahoo.com.br.

** Foto do topo: Ladário, MS, de André Bonacin.

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