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Supremacia regional no Cone Sul: a Usina de Itaipu como instrumento da luta diplomática entre Brasil e Argentina na década de 1970



Primeiramente olá a todos, faz algum tempo que estou relutando em postar aqui no blog, principalmente por notar que a minha área de pesquisa é um tanto diferente das aqui apresentadas. Porém, hoje, após alguns eventos, revi minha posição e vou postar um artigo que escrevi em 2007 para a disciplina de História e relações internacionais no Prata (séc.XX). Espero que seja valido a postagem.


Camila Nehring Belo [1] [2]


Este artigo tem como objetivo evidenciar alguns aspectos que rondaram as relações internacionais na região do Cone Sul no decorrer da década de 1970, mais precisamente a luta diplomática entre a Argentina e o Brasil pela supremacia regional e o papel da usina de Itaipu nesse processo. Para que tal objetivo seja alcançado temos que primeiramente compreender quais eram os contextos internacionais político e econômico desde o inicio da década de 1960, quando a peculiar situação criada com a revolução cubana delineou um novo cenário continental, onde as relações se tornaram extremamente conflitivas, substancialmente após o alinhamento de cuba ao bloco soviético. Nesse sentido, quando redirecionou sua política exterior Fidel Castro criou um grande problema para o Pentágono e para o Departamento de Estado norte-americano, segundo nos evidencia Amado Luiz Cervo e Mario Rapoport no livro História do Cone Sul.

Assim, em contra partida ao alinhamento cubano ao bloco soviético e a expansão do comunismo na América Latina, o “Presidente norte-americano Jonh F. Kennedy (1961-1963) lançou a Aliança para o Progresso (ALPRO), que nada mais era do que um conjunto de programas econômicos e sociais destinados aos países latino-americanos e financiados pelos Estados Unidos.” (CERVO e RAPOPORT,1998, p.278). Não esquecendo que para além das questões econômicas e sociais os governos estadunidenses investiram maciçamente em intervenções militares nessa região como, por exemplo, o episodio da invasão de Cuba por forças contra-revolucionarias, que segundo Voltaire Schilling, eram “formadas por integrantes da ditadura de Batista exilados em Miami, na Flórida” (1991, p.48) que foram treinados em campos da CIA, o conflito se estendeu ao ponto de aviões B-16 de sua propriedade bombardearem a cidade de Havana. Além de medidas como a fundação no ano de 1961 da School of the Americas, no Forte Gulick, na Zona do Canal do Panamá.

Neste contexto, a prioridade norte-americana em impedir a expansão do comunismo se estendeu a uma política de interiorização do seu combate nos países sul-americanos. Essa política objetivava o apoio, tanto militar quanto financeiro, a golpes militares de direita. Nesse sentido, os exemplos mais expressivos são os golpes civil-militares no Brasil, que fora encabeçado pelo General Humberto de Alencar Castelo Branco, deflagrado no ano de 1964 e na Argentina, pelo General Juan Carlos Onganía em junho de 1966. Essas intervenções na região possibilitaram a abertura de um novo jogo político e diplomático: a busca pelo status de satélite norte-americano no Cone Sul, lembrando que tais intervenções já existiam, o que mudou foi a natureza pelas quais eram justificadas. Nesse sentido Schilling afirma que “na América Latina, entre 1964 a 1978 apenas a Colômbia e a Venezuela permaneceram com regimes constitucionais” (1991, p.59). Assim, Amado Luiz Cervo afirma no Livro Relações Internacionais da América Latina que,

Cuba prosseguia sendo uma das ocupações das diplomacias americanas durante a década de 1960 (...). Não, havia, contudo, uniformidade de ação e de pensamento entre as chancelarias do continente para enfrentar o desafio de esquerda. A intromissão desenfreada da guerra fria no continente levantava ciúmes e suspeitas entre os países, grandemente governados por militares que buscavam o tratamento privilegiado dos Estados Unidos em troca de envolvimento político contra a guerrilha e Fidel Castro. No Cone Sul, essas circunstancias acenderam as rivalidades entre a Argentina e o Brasil, mesmo porque o Brasil irrompeu como campeão do anticomunismo pan-americano. (2007, p.103).

Portanto, podemos compreender que a busca pela supremacia regional foi pautada pelas políticas norte-americanas. No entanto, não exclusivamente, pois as questões que mais interferiram na pauta diplomática, durante as décadas de 1960 e 1970, das chancelarias brasileira e argentina foram os recursos hídricos da Bacia do Prata, que se tornou a principal causa de problemas e disputas entre esses dois paises - não deixando de lado um dos principais personagens dessa desavença, o Paraguai, que mantinha como uma de suas características diplomáticas uma política pendular de relações, tanto com a Argentina quanto com o Brasil, como podemos observar nos episódios da construção da usina hidrelétrica Binacional de Itaipu, em parceria com o Brasil da usina de Corpus, em parceria com a Argentina.

Uma das características da luta diplomática entre o Brasil e a Argentina, segundo Cervo e Rapoport era que “embora suas economias não competissem e até se completassem”, suas relações “caracterizaram-se cada vez mais por forte rivalidade, a gerar tensões e graves crises” (1998, p.297). Lembrando que essas relações se entremeavam com esforços de entendimento e de cooperação, como no episódio da VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos, em Punta del Este (Uruguai) no ano de 1962, quando a Argentina, segundo Moniz Bandeira “permaneceu ao lado do Brasil (...) e se absteve” (1993, p.147) da votação que tinha por objetivo a expulsão de Cuba da OEA. Portanto, podemos constatar que as relações entre a Argentina e o Brasil se caracterizam pela ambivalência, que Cervo e Rapoport evidenciam e argumentam constatando que tanto o conflito quanto a cooperação se manifestam “conforme as articulações econômicas e políticas das correntes que eventualmente detivessem o poder em cada um dos países.” (1998, p.315).

Nesse sentido, para suavizar as relações entre Brasil e Argentina, no final da década de 1960, varias medidas diplomáticas foram criadas, principalmente para amenizar aqueles conflitos que eram decorrentes de questões relacionadas ao aproveitamento dos recursos hídricos da Bacia do Prata. Uma dessas medidas adotadas foi a realização da Reunião de Chanceleres da Bacia do Prata, cujo a primeira ocorreu no ano de 1967 em Buenos Aires, sendo concebido como documento final a Declaração de Buenos Aires que explicitava a posição argentina de não inviabilizar projetos de aproveitamento hídrico na Bacia do Prata, mas sim que o país portenho procurava garantir a participação de todos os Estados ribeirinhos, nesse sentido Luciano Moraes Melo afirma que a atuação da argentina possibilitaria “um desenvolvimento harmônico e equilibrado da região platina, em benefício dos interesses comuns de seus países” (2007,p.26). No ano seguinte realizou-se a II Reunião de Chanceleres da Bacia do Prata, agora em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, onde assinou-se a Ata de Santa Cruz de la Sierra, sendo delineado os primeiros contornos jurídicos do Sistema da Bacia do Prata, e onde, também, foi aprovado o estatuto do Comitê Intergovernamental Coordenador – CIC, que consistia em um organismo encarregado de examinar e coordenar os projetos multinacionais que visavam a potencialidade econômica da Bacia do Prata. Finalmente em 1969 deu-se a III Reunião dos Chanceles da Bacia do Prata, realizada em Brasília, onde foi assinado o Tratado da Bacia do Prata, ou Tratado de Brasília, completando a institucionalização do chamado Sistema da Bacia do Prata pelos países platinos.

Após tais medidas acreditou-se que os conflitos regionais relacionados às questões hídricas cessariam. No entanto os tratados e os atos politicos e diplomaticos não foi suficientes para dar fim aos sucessivos conflitos. Assim, as relações entre a Argentina e o Brasil na década de 1970, continuaram a se caracterizar pelas questões relacionadas ao aproveitamento hídrico da Bacia do Prata, mais precisamente, a construção da barragem de Itaipu, e a consolidação da parceria política e econômica entre o Brasil e o Paraguai, isolando o país portenho das negociações e de futuros empreendimentos que envolvesse a questão.

Para além do isolamento político, as medidas tomadas para a construção de Itaipu prejudicavam economicamente a Argentina, como no episódio da usina de Corpus, pois a construção da barragem de Itaipu em Foz do Iguaçu inviabilizaria as obras da usina argentina, que seria construída logo abaixo de Itaipu no rio Paraná, reduzindo sua potencialidade e encarecendo o valor do quilowatt gerado, como afirma Pereira (1974, p.116). Porem as objeções portenhas contra a construção de Itaipu não se resume ao ótimo aproveitamento de Corpus, a essa questão soma-se o risco do rompimento da barragem e o perigo da esquistossomose, através da infestação dos caramujos pelo represamento das águas.

Assim, o episodio de Itaipu se estende por um longo período, e concomitante ao amadurecimento do projeto de Itaipu, o Estado argentino buscava alternativas para inviabilizá-lo, travando verdadeira luta diplomática entre as chancelarias argentina e brasileira, que segundo Luciano Morais Melo “acabariam por levar a questão regional para uma esfera extracontinental de atuação, dentro de um jogo realista de busca de equilíbrio pelo poder” (2007, p.23). Nesse sentido,

Itaipu fazia-se presente para a Argentina como um problema de segurança, de acordo com uma linha de pensamento predominante nos setores mais nacionalistas, onde o empreendimento serviria para que o Brasil pudesse controlar o curso dos rios que atravessavam a zona mais rica do país. (idem, p.24).

Essa linha de pensamento se vez evidente na a Conferência da Bacia do Prata, realizada em Assunção no ano de 1971. Onde o Chanceler argentino Luís Maria de Pablo Pardo propôs a tese da consulta prévia, que consistia em:


  1. nos rios internacionais contíguos, sendo a soberania compartida, qualquer aproveitamento de suas águas deverá ser precedido de acordo bilateral entre os ribeirinhos e;
  2. nos rios internacionais de curso sucessivo, não sendo a soberania compartida, cada Estado pode aproveitar as águas na medida de suas necessidades, sempre que não cause prejuízo sensível a outro Estado da Bacia.

Nesse sentido, a partir das afirmações de Melo, a “estratégia argentina baseava-se em construir, passo a passo, uma base de argumentação para eventualmente levar a questão à Corte de Justiça Internacional”. Dessa forma, o presidente argentino Lanusse iniciou uma série de visitas aos países latino-americanos, como parte da estratégia de isolar o Brasil no caso da discussão ser levada a um fórum regional ou mundial. Tal fato se concretizou, e a discussão foi levada ao fórum mundial da Conferência de Estocolmo, no ano de 1972, porém, a tese argentina não obteve êxito, ficando para ser discutida e votada na XXVII Assembléia Geral das Nações Unidas, que foi realizada no mês de agosto daquele mesmo ano, na cidade de Nova York. Assim, em reunião pessoal entre os dois Chanceleres, durante a assembléia, chegou-se a um entendimento: descartava-se o princípio da consulta prévia, sendo assegurando em seu lugar o princípio de não causar danos fronteiriços, ou seja, o principio da informação prévia. Nesse contexto, o Brasil ficou livre para construir Itaipu, informando à Argentina sobre dados técnicos do projeto, podendo a mesma recorrer a um tribunal internacional, no caso de sentir-se lesada caso houvesse algum dano decorrente da obra (PEREIRA, 1974, p. 229).

O debate sobre a usina prosseguiu e no ano de 1973 foi assinado o Tratado de Itaipu, que mais uma vez evidenciava o caráter de exclusividade do aproveitamento do Rio Paraná entre o Brasil e o Paraguai. Porem, o tratado não isolava totalmente a Argentina, pois no documento final foi incluído o anexo B, mais conhecido como “clausula peronista”, que consistia em uma condição imposta por Stroessner, que havia cedido às pressões do Governo argentino. O anexo B agrupava o objeto central das discussões portenhas, a inviabilidade da usina de Corpus. Assim, segundo Melo “A contenda argentino-brasileira giraria agora em torno da questão da compatibilização dos empreendimentos de Itaipu, já em obras, e de Corpus, hidrelétrica argentino-paraguaio que seria construído a jusante de Itaipu” (2007, p.35).

Dentro deste contexto, o Governo argentino procurou retomar as discussões a respeito da consulta prévia, e conseguiu levar a questão à XXVIII Assembléia Geral das Nações Unidas, onde foi aprovada a Resolução 3129, que contemplava que “a cooperação entre países interessados na exploração de ditos recursos deve desenvolver-se sobre a base de um sistema de informação e de consultas prévias, no marco das relações normais que existem entre eles” (MELO abud BARRETO, 2007, p.36). No entanto, como salienta Gallo Yahn Filho, a resolução não dispunha de caráter de coerção, sendo que sua força jurídica se daria no plano moral e na boa convivência entre os Estados (2005, p. 10).

Assim, já no ano de 1977 sinalizando para uma tentativa de diálogo teve início um ciclo de negociações tripartites entre Argentina, Brasil e Paraguai sobre a questão do aproveitamento do Rio Paraná. Tais reuniões tiveram continuidade nos anos de 1978 e 1979. Nesse ultimo ano, tendo o Brasil um novo Presidente e um novo Embaixador, novos ares foram dados a pauta em questão. Não deixando de lado que o contexto internacional, também, mudou durante os anos do processo da construção da usina de Itaipu, principalmente, na medida em que as relações econômicas e políticas dos paises sul-americanos em relação aos Estados Unidos foram assumindo posições cada vez cada vez mais conflitivas. Gerados pelas políticas de direitos humanos encabeçados pelo presidente Carter (1977-1981), que segundo Schilling “pretendia mudar a face do império agressivo e sem escrúpulos, marca registrada do governo Nixon e de seu assessor Henry Kissinger, e, ao mesmo tempo colocar a URSS numa posição eticamente incomoda” (1991, p.60). Ainda sobre esse assunto o autor afirma,

Como era esperado, os atritos do governo Carter com as ditaduras latino-americanas começaram a espoucar. Embaixadores norte-americanos pressionavam os regimes castrenses para que abrandassem os rigores das prisões políticas bem como suprissem as praticas de tortura. (…) Carter começou a congelar a fornecimento de armamentos a vários países (Guatemala, Nicarágua, Chile e Argentina), sendo que o Brasil terminou por romper o acordo milita com os Estados Unidos, por iniciativa do governo Geisel em 1977. (idem, p.60-61).

Nesse contexto de mudanças, iniciou-se uma tentativa de cooperação e entendimento entre o Brasil e a Argentina e em 19 de outubro de 1979 foi assinado o Acordo de Cooperação Técnico-Operativa entre Brasil, Argentina e Paraguai, documento que regulamentava a compatibilização de Itaipu e Corpus. Assim, segundo Yahn, “A assinatura do Acordo Tripartite colocou fim ao impasse em torno dos projetos de Itaipu” (2006, p.11).

A partir das colocações expostas ao longo desse artigo podemos compreender algumas questões que envolveram as relações internacionais do Brasil e da Argentina durante as décadas de 1960 e 1970, sobretudo as voltadas para a implementação da usina de Itaipu, e como as atitudes tomadas por ambas as chancelarias afetaram tal empreendimento. Lembrando que a divergência sobre a construção da usina refletia um cenário internacional, que consistia na busca pela supremacia regional. Assim, procurei ao longo desse artigo ponderar sobre questões amplas e que envolvessem o âmbito regional e o internacional, ressaltando que ambos coexistem e que seria uma falha sobrepor um ao outro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BANDEIRA, Moniz. Estado Nacional e Política internacional na América Latina: O continente nas relações Argentina-Brasil (1930-1992). São Paulo: Ed. Ensaio, 1993.
CERVO, Amado L.; RAPOPORT, Mario. História do Cone Sul. Rio de Janeiro: Ed. Revan; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
CERVO, Amado. Luiz no Livro Relações Internacionais da América Latina. São Paulo: Ed. Saraiva, 2007.
MELO, Luciano Moraes. Itaipu: conflito e cooperação na bacia do prata (1966-1979). 2007. 52f. Monografia (Bacharelado em Relações Internacionais) - Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal, Dourados.
PEREIRA, Osny Duarte. Itaipu: prós e contras. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1974.
SCHILLING, Voltaire. EUA x América Latina: as etapas da dominação. Porto Alegre: Ed. Mercado Aberto, 1991.
TRATADO DA BACIA DO PRATA, de 23 abr. 1969. Revista de Informação Legislativa. Brasília, DF, ano 21, nº 81, Suplemento, p. 625-628, jan.-mar. 1984.
TRATADO DE ITAIPU, de 26 abr. 1973. In: PEREIRA, Osny Duarte. Itaipu: prós e contras. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. p. 199-207.
YAHN FILHO, Armando Gallo. Conflito e cooperação na Bacia do Prata em relação aos cursos d’água internacionais (de 1966 a 1992). Dissertação (Mestrado pelo programa de pós-graduação em relações internacionais). São Paulo, 2005. Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp. Acessado em: 15/ dezembro/ 2008.


[1] Artigo apresentado a disciplina “História e relações internacionais no Prata (séc.XX)” ministrada pela professora Dr. Ceres Morais.
[2] Aluna regular do programa de Pós-graduação em Historia da Universidade Federal da Grande Dourados.

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