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Transporte Coletivo, Público, Gratuito e Universal

Jones D. Goettert
Imagem da cidade de Dourados, tirada da internet.

Jones D. Goettert*



A produção e o consumo de carros novos vêm batendo recordes atrás de recordes. Com a ampliação do poder de compra e a disponibilidade de crédito (nesse início de ano mais restrito), setores mais endinheirados compram carros em valores na casa de centenas de milhares; setores da classe média trocam seus carros semi-luxuosos por carros de maior potência e tamanho (em um típico processo de americanização das ruas e estradas brasileiras); trabalhadores que até então andavam de moto ou bicicleta compram seus primeiros “carros populares”, outros, suas primeiras motos novas; e carros usados barateados também encontram mercados propícios. A pergunta que sobra: “É ainda necessário o transporte coletivo?” A resposta é SIM e os argumentos são vários e incontestáveis. Mas por que também a dificuldade em sanar tal problema?

Em primeiro lugar, e sobretudo, o Capitalismo é formado por classes sociais que participam como parte de sua própria lógica de produção e reprodução, que tem na acumulação de capital o seu motor central. De um lado, os capitalistas privadamente se apropriam do mais valor (mais valia) produzido coletivamente; e, de outro, os trabalhadores despossuídos de bens de produção produzem coletivamente para a apropriação privada dos primeiros. Como desdobramento dessas relações materiais, todo o conjunto social acaba por se dividir entre uma e outra classe. As ruas e estradas, por exemplo, em sua condição de espaço coletivo e público (para todas e todos) como via do direito burguês de ir e vir, é em grande medida tornado privativo pelos os automóveis (uma das expressões máximas da produção do indivíduo – e do individualismo – na “sociedade moderna”), tornando ruas e estradas quase que intransitáveis, principalmente em cidades médias e grandes. Os mais ricos se resolvem: São Paulo já tem uma das maiores frotas de helicópteros do mundo... Enquanto os mais pobres passam mais de quatro horas em trens superlotados, velhos e desconfortáveis, como naqueles que chegam e partem da Central do Brasil no Rio de Janeiro. E no meio disso tudo, está o Estado.

As contradições parecem de difícil solução e por isso os embatem são inevitáveis. E aqui, o embate entre transporte privado e transporte público. Por ser privado, obviamente o primeiro não pode ser coletivo, nem público, nem gratuito e nem universal. Mas o segundo pode e deve. O argumento social é simples: todas e todos devem ter assegurado o direito de ir e vir. O fosso entre direito ao movimento na cidade e à privação dele é enorme. E o público quer o direito ao público. É já insustentável a lógica na qual alguns têm direito à cidade e a seus lugares, e a maioria ainda é privada ao acesso a seus bens mais elementares pelo fato de não possuir as condições para o transporte. O transporte coletivo deve ser urgentemente tornado público, com o público e para o público. E para isso deve ser gratuito.

O direito ao transporte privado deve garantir, simultaneamente, o direito de todas e todos ao transporte coletivo público gratuito. Como assim? Os donos de veículos particulares já são cobrados pelo uso das ruas e estradas, e parte dessa cobrança deve ser destinada à ampliação, melhoria e gratuidade do transporte coletivo. Um ônibus coletivo público, com 60 pessoas, pode equivaler a 60 carros (o primeiro ocupando 15 metros; os segundos, mais de 200!). A gratuidade, por outro lado, poderia levar a quem tem carro a trocar de transporte, tendendo a pressionar ainda mais pela qualidade do serviço (como em alguns países europeus, é preciso incentivar o uso do transporte coletivo). Os argumentos “ambientais” são, por sua vez, vários e já largamente conhecidos, como diminuição da poluição do ar, sonora, garantia dos recursos não-renováveis etc.

E, por fim, a universalização do transporte coletivo, público e gratuito deve ser uma luta pela inclusão radical de todas e todos ao direito ao mundo, que se inicia da casa para a rua e da rua para a cidade toda (para o campo e do campo para a cidade...). Em Dourados, por exemplo, o direito à escola e à universidade para um conjunto importante da população passa pelo direito ao transporte coletivo, público e gratuito; o direito à ampliação do poder de compra para milhares de trabalhadores passa pela gratuidade do transporte para os locais de trabalho; o direito ao lazer e ao esporte, da mesma forma; o direito à reunião, à mobilização, à organização popular e social passa pelo direito de ir e vir, assim como o direito à informação e à comunicação passa hoje pelo direito de acesso e uso do espaço virtual (ciberespaço).

E tudo isso não é nada mais que pensar e fazer a sociedade ainda dentro dos referenciais da sociedade capitalista. Paradoxalmente, a necessidade de transporte coletivo, público, gratuito e universal é apenas um passo necessário para que o próprio modo de produção capitalista se reproduza sob o marco ideológico no qual ele mesmo se produziu e se firmou. A ironia é que a classe trabalhadora, explorada e espoliada, tenha que lutar pela universalização de um direito idealizado pela classe que a explora, mas que não tem a coragem de levar suas máximas ideológicas às últimas consequências.

* Professor do curso de Geografia, da Faculdade de Ciências Humanas, da UFGD.

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