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Evangelismo e civilização: comentários sobre a Missão Evangélica Caiuá em Dourados, MS





por Leandro Possadagua 
  
No início do século XX, a situação dos índios Caiuá, no então estado de Mato Grosso, era altamente conflituosa, tensa. Segundo a antropóloga Graciela Chamorro, em seu livro Terra Madura/Yvy Araguyje: fundamento da palavra Guarani, além de alguns cristãos terem se apropriado da terra dos índios, vastas porções de terras foram entregues à colonização de estrangeiros e, além de tudo, os indígenas ainda eram vistos como entrave ao desenvolvimento da região, sendo caçados por bugreiros pagos por fazendeiros que se desejavam livres deste incômodo invasor.


A terra livre de índios era altamente valorizada, porque tornava mais fácil a ocupação e produção. Tal afirmação soa, no mínimo, estranha, já que Caiuá no idioma Guarani significa procedentes da mata, mas eram percebidos como ocupantes de uma terra que não lhes pertenciam. 

Com a fundação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910, o Estado passou a ter a tutela dos índios, tornando-se responsável pelos nativos. Na prática, significava que o órgão estava incumbido de tornar os indígenas aptos e autônomos para a convivência com a população que detinha as rédeas do poder em suas mãos, os não-índios. Tutelados, foram vítimas de inúmeras medidas arbitrárias por parte do SPI, tiveram seus espaços tradicionais de ocupação progressivamente invadidos, eram recrutados como mão-de-obra barata em estabelecimentos agropecuários vizinhos e suas terras eram oficialmente delimitadas, entenda-se aqui, reduzidas. Ou seja, defendia-se uma autonomia para os índios, porém estranha aos seus modelos tradicionais de organização social.

No final da década de 1920, o Serviço de Proteção aos Índios ganhava mais um reforço, no que diz respeito ao projeto de civilizar os indígenas, a instalação da Missão Evangélica Caiuá, vizinha geograficamente à Reserva Indígena de Dourados (criada em 1915). Este seria o primeiro esforço cooperativo missionário criado e conduzido por igrejas protestantes brasileiras com o fim de cristianizar povos indígenas, no caso específico, os Caiuá. Atuando como parceira do Estado em diversas ocasiões, a Missão tinha o claro intuito de evangelizar estas “pobres almas” imersas no paganismo e na influência pecaminosa que o contato com a sociedade não-índia tinha lhes feito até então.

Alheios ao processo de alteridade, os missionários protestantes somaram na construção de uma iconografia indígena deturpada e pejorativa, que o mostrava como um ser pobre, bárbaro e relegado à própria sorte, que necessitava, portanto, ser evangelizado – civilizado, ignorando assim, o contexto cultural. Ofertando pequenos utensílios e roupas, sempre com o apoio dos órgãos oficiais, a Missão buscava progressiva aproximação com os indígenas, atuando como uma entidade facilitadora do contato, estreitando assim a relação com a cultura e costumes não-índios. 

A Missão Caiuá fez uso de dois pilares estratégicos visando a “conversão” dos indígenas: saúde e educação. Com auxílio das igrejas cooperadoras, fundou um modesto hospital na década de 1930, os missionários médicos aplicavam novos métodos medicinais, considerados mais eficazes que os tradicionais, geralmente, ministrados por lideres religiosos indígenas. Contudo, não se pode negar que, apesar de não levar em consideração os aspectos culturais do grupo, o cuidado com a saúde dos indígenas foi de suma importância, por exemplo, no combate à Tuberculose, que vitimou um grande número de indígenas na segunda metade do século XX.

Os cantos e rezas evocados pelos indígenas, não só em ocasiões em que buscavam a cura de um enfermo, mas em inúmeras outras circunstâncias, eram vistas a partir da ótica cristã ocidental, ou seja, entendida como manifestação deturpada de religiosidade. O que pode muito bem, ter sido considerado um entrave à conversão ao cristianismo protestante, devendo, então, ser desestimulado ou até mesmo proibido pelos missionários. Segundo demonstra o artigo, Cantos Xamânicos: as palavras que agem [Publicado na Revista Índio], do antropólogo Spensy Pimentel, estes cantos e rezas Caiuá podem ser entendidos como convocação e apelo às entidades de outro plano de existência que possibilitam o sucesso em tudo que está sendo iniciado, seja uma lavoura, a construção de uma casa ou o nascimento de uma criança. 

Desacreditar os modos de crença, introduzir novos elementos sagrados e transformar o indígena em um ser apto à civilização era, além de um constante anseio dos não-índios, imprescindível ao projeto evangelizador da Missão. Para tanto, era necessário que a oralidade indígena fosse posta em segundo plano. Assim, a alfabetização, aliada ao ensino de princípios cristãos, sobretudo das crianças, foi um dos métodos empregados. Além disso, no decorrer dos anos, a alfabetização também auxiliou nos esforços em preparar missionários índios com o fim de que estes pudessem também atuar junto aos respectivos patrícios.

 Personagem emblemático, fruto das ações de alfabetização da Missão Caiuá, foi o líder indígena Marçal de Souza. Os conhecimentos adquiridos em seu grupo, aliada a alfabetização e futura formação proporcionada pela Missão, foram instrumentos utilizados pelo pequeno deus (Tupãy no idioma Guarani) em sua destacada luta pela causa dos indígenas. Marçal tornou-se mundialmente conhecido ao discursar em defesa dos interesses indígenas e denunciar a condição desumana na qual se encontravam os índios no país durante a visita do Papa João Paulo II ao Brasil em 1980. Esta trajetória foi violentamente interrompida em 1983, quando foi brutalmente assassinado. A morte de Marçal não parou a luta indígena pela reconquista de suas terras, mas, ao contrário, seu martírio chamou atenção do poder público para a necessidade de rever a ocupação/invasão do território indígena em todo o país. 

Atualmente, o grupo Caiuá de Dourados tem uma história que já dura 83 anos com a Missão Evangélica Caiuá. O cenário e contexto no qual a Missão se encontra foi alterado ao longo dos anos, porém, os indígenas ainda frequentam a escola, os cultos, usam o Hospital da Missão (mantido em parceria com o Sistema Único de Saúde/SUS) e o Instituto Bíblico. Segundo relata a pesquisadora Graciela Chamorro, em seu artigo O pluralismo religioso entre babel e pentecostes: igrejas cristãs e alteridade indígena [Publicado no III Simpósio Internacional sobre Religiosidades, diálogos culturais e hibridações, 2009], de certa forma, já não há um estranhamento da parte da comunidade indígena frente ao trabalho da Missão. Além disso, existem hoje líderes políticos e espirituais egressos das escolas da Missão, engajados na promoção da religião indígena e também participantes dos cultos protestantes.

Segundo Spensy Pimentel, por terem sido comprimidos em pequenas reservas e sem mata nativa que possibilite seu modo de vida tradicional, aumentam significativamente as mazelas enfrentadas por estes grupos, como a fome, aumento da taxa de suicídios entre os jovens e os altos índices de violência. Contudo, a situação atual dos Guarani e Caiuá é uma das mais alarmantes, já que, atualmente cerca de 12 mil pessoas sobrevivendo em uma área em torno de 3.500 hectares. Os problemas dos indígenas da região tem se agravado com as intensas (e não poucas vezes sob o signo da violência física contra os indígenas) disputas com fazendeiros por terras tradicionalmente ocupadas. Tais conflitos intensificaram-se com as publicações das portarias de autorização para o início de estudos para identificação de territórios tradicionais indígenas, realizadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Durante o longo período de atuação missionária houve re-ocupação de terras pelos indígenas, assassinatos de lideranças e professores índios, destruição de acampamentos, significante crescente nas taxas de suicídios, uma intensa propaganda na mídia local e estadual contrária às reivindicações dos indígenas e o reforço de estereótipos, preconceitos e imagens negativas dos índios pelos. 

Em sua história, a Missão Evangélica Caiuá cometeu erros e acertos em sua empreitada cristianizadora; auxiliou em alguns casos, mas em outros acabou por prestar um desserviço aos indígenas. É possível que a Missão tenha alcançado alguns de seus objetivos, entre eles o de “apresentar” a religiosidade cristã aos indígenas e proporcionar a eles uma medicina mais “eficaz”, porém, não se pode eximi-la de ter colaborado no processo de aculturação dos mesmos, fazendo com que sua religião e muitos outros aspectos culturais fosse prejudicado em suas práticas. 

As igrejas que hoje atuam em áreas indígenas precisam fazer uma reformulação fé, exercitarem o ouvir, e, principalmente, trocar o ensinar pelo aprender. O cristianismo seria enriquecido se, ao invés de propor a negação da religiosidade indígena, observasse a forma com que estes reverenciam a natureza que lhes supre a necessidade e de como estes nunca pensaram suas manifestações religiosas como superiores a outras. Em suma, a principal “missão” deve ser o bem comum, com respeito e demonstrações práticas do que a religião propõe, ligar o homem à divindade – seja ela qual for.

Tendo em vista o conflituoso momento em que os indígenas estão inseridos, um trabalho missionário engajado política e ideologicamente a favor da causa indígena é imprescindível. É preciso se posicionar efetivamente e, se possível for, publicamente. A despeito dos interesses latifundiários, de fazendeiros que matam e apostam na impunidade do sistema. Ser cristão, neste caso, é prezar pelo direito que o índio tem em permanecer em suas terras tradicionais, onde seus antepassados foram sepultados. Ser protestante, aqui, deve ser entendido não como o anseio por agradar a Deus a fim de alcançar as benesses do reino celeste, mas como designação daqueles que lutam por causas que transcendem os interesses capitalistas de acumulação. Ser cristão é, também, ser um pouco mais humano, um pouco mais “índio”. Porque, afinal, como apontado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, “no Brasil, todo mundo é índio, a não ser quem não é”. 


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* Originalmente postado em 26/maio/13.

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