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O que os filósofos diriam sobre a IA: Platão

  


O tema desse segundo post da série é a busca de refúgio nas inteligências artificiais, que maqueam a realidade num mundo de mentiras e nos oferecem uma promessa de fulga do mundo real.

Texto de Eduardo Luiz

Certa vez, entrei em um ônibus lotado, voltando para casa no horário de pico. Quase como sempre tive que ficar a viagem toda em pé. Observando a paisagem urbana que passava lá fora pela janela, notei a paisagem urbana que rolava dentro do espaço confinado. Astuto como um cientista, observei o fenômeno.

Do meu lado, sentado, havia um homem com aparência jovem. Ele estava vestindo uma roupa azul, calçando um sapato de trabalho muito velho e com algumas partes da roupa e do cabelo manchadas de tinta. Muito provavelmente trabalhava com pintura e voltava para casa. Mas o que me chamou atenção nesse jovem foi o que ele estava fazendo com seu celular.

Olhava fixo e imóvel para a tela, que várias vezes quase se apagou. Com um rosto interrogativo, indeciso, observava uma foto sua, de um outro momento, onde lá se apresentava um outro rosto, em uma outra paisagem, com uma outra intenção. Foto bem tirada, trabalhada com algum filtro e ornamentada com uma legenda simples, de poucas palavras, que ele mesmo havia demorado para escrever no decorrer da viagem.

Finalmente tocou no botão para postar a foto e ela foi carregada em uma rede social.

Toda aquela consternação havia se convertido em entusiasmo. Logo depois que sua foto se transformou em publicação, sem demoras, resolveu anunciar sua imagem nos storiespreparando-a com algumas figurinhas que diziam “New post!”, pois é frequente presumir que dessa maneira seus seguidores receberão a foto diretamente e, com isso, ficará registrado para si, se não um número de curtidas, pelo menos um número de visualizações.

Olhando para o jovem rapaz no ônibus, manchado pelas marcas de uma vida amarga, muito provavelmente produzida por acidentes e necessidades indesejáveis, e comparando-o com a imagem bela, bem-feita, que acabava de publicar na internet, composta por detalhes muitíssimo mais desejados, quase como se fossem de uma outra pessoa, pude entender a consternação, talvez até mesmo o contexto que o pressionou a dedicar tanto cuidado e esmero por aquela publicação.

Muito possivelmente a maioria das outras pessoas daquele ônibus, que também deitavam olhos concentrados sobre a tela de seus celulares, estavam igualmente experimentando uma péssima rotina, enfurnadas num ônibus lotado depois de um trabalho entediante, desgastante, frustrante, mas que, com a possibilidade de verem um outro rosto no espelho mágico do smartphone, encantavam-se convictas de que aquela vida publicada, afirmada pela visualização de um outro, tem o poder de servir como um álibi para não aceitar o gosto ruim da realidade experimentada todos os dias.

Como observou muito bem o filósofo Walter Benjamin durante o período das Grandes Guerras, os soldados dos países vencedores que voltavam para suas famílias, apesar de poderem comemorar sua vitória, traziam para casa a memória de acontecimentos terríveis do campo de batalha. Benjamin percebeu que o constrangimento, a melancolia e, em muitos casos, as neuroses de guerra eram sintomas claros de que os soldados queriam se livrar, sobretudo, da lembrança dos horrores vistos e cometidos. 

Eles não tinham uma história para contar. Afinal, ninguém gostaria de transmitir para as pessoas queridas o quão a morte esteve próxima — e o quão ela ainda continuaria próxima nas complicações sociais decorrentes. 

Walter Benjamin

Com isso, Benjamin fez uma importante distinção entre vivenciarmos e experimentarmos um acontecimento. Vivenciar é uma relação impermeada contra os fatos, onde eles não são absorvidos e não se transformam em memória. Isso se dá porque geralmente o fato vivenciado não corresponde a um desejo e, portanto, não se retém quando passa por nós — não se expande para além de uma mera consciência de que aconteceu. 

Experimentar, no entanto, é degustar o acontecimento, sentir suas nuances, dedicar atenção, digeri-lo e alimentar-se com seus nutrientes, expandindo a ocasião em uma lembrança que nos acompanha até mesmo depois de seu término, porque o que sentimos do mundo foi prazeroso, foi desejado.

Era essa a condição dos soldados: como poderiam se enriquecer diante de acontecimentos tão pobres? Como poderiam querer experimentar, absorver momentos tão trágicos do campo de batalha?

Aquele ônibus do fim da tarde, no horário de pico, carregava de volta para casa outros combatentes, aqueles que enfrentam uma vida tão trágica quanto um campo de batalha, que lutam diariamente para conquistarem um pequeno quinhão de benefícios através de seu emprego aos mais eficientes processos da maquinaria social moderna. 

Por isso voltamos tão calados quanto os soldados das Grandes Guerras: sem acontecimentos desejados, não os experimentamos, apenas os temos como vivências que não constituem memória; sem memória, não há uma história para contar. Passamos a acumular vários fatos, nos conectamos com várias pessoas, sofremos as mais fortes sensações, mas quase nada delas realmente experimentamos, pois se isso acontecesse perceberíamos o quão indesejável e inescapável é a condição da própria vida (des)arranjada. 

E, então, surge o gosto do vazio — a profunda frustração advinda da sensação de não ter saído do lugar apesar de tanto esforço, de tanto trabalho. O tempo passa rápido, porque não nos lembramos dele. Envelhecemos e não nos damos conta do passado deixado para trás. Sem percebermos, nossa potência mingua até ao ponto em que, de tão pequenos, nos contentamos com pequenos prazeres, por si só insuficientes e, por isso, viciamo-nos em mais estímulos para desesperadamente reanimar a vida desanimada, desestimulada, desistente... 

Porém, hoje, diferente da época em que viveu Benjamin, dispomos de um serviço tecnológico especializado em compensar, mesmo que delirantemente, a péssima vida que vivemos. As tecnologias digitais (expressas em seu uso “social”) nos deram a chance de contarmos uma outra história sobre nossa vida; experimentar uma fantasia sob medida. 

Lá experimentamos acontecimentos falsos e gozamos de falsas histórias (stories) que podem ser editadas, patrocinadas, anunciadas e descartadas, na medida da demanda volátil que surge pela ânsia de mostrar a reputação de um EU que deu certo, poderoso e sedutor, mas que não passa de uma maquiagem sob a imagem que temos de nós mesmos, conscientes de que estamos metidos em um cenário real onde não somos a majestade que gostaríamos de ser. 

As tecnologias que tornam a vida uma existência virtual criam, na verdade, um mundo paralelo, simulado, pois filtram a realidade e a “corrigem” através das mentiras narradas que podem ser substituídas por outras, caso não atendam mais as exigências da angústia. No mundo virtual sou eu quem decide o que aparece ou desaparece; eu que decido quando, como e com quem irei interagir — o que irei experimentar.

Esse tipo de atitude em relação à realidade é o que podemos declarar como uma “indiferença” ensimesmada. E para sermos indiferentes às coisas, especialmente contra as que não gostamos, precisamos nos esforçar para ignorar que elas existem. 

Platão em detalhe de pintura do renascentista Rafael

Porém Platão, falando através de Sócrates, há tanto tempo, alegava que a “ignorância é o pior dos males”, pois o ignorante ignora até mesmo que ignora — vê um mundo limitado, curto, escurecido, onde qualquer pequeno brilho de uma pequena ideia por si só já será tratado como verdade absoluta. 

Ignorar também é uma péssima estratégia para fugir das preocupações, dado que embora não percebamos com muita clareza os perigos e nos tornemos indiferentes, isso não significa que eles em si deixam de existir — apenas “desaparecem” para nós, os observadores.

Em sua “alegoria da caverna”, Platão discorre que somos acostumados a acreditar que o mundo é aquilo que conhecemos a partir de nossas experiências, mas que elas, em si, não garantem a verdade sobre o que é real. Na caverna, seus prisioneiros pensam que o mundo real se encerra naquilo que veem, não suspeitando que talvez seu conhecimento possa ser maior e revelar mais complexidade.

Os prisioneiros se contentam com seu aprisionamento porque não percebem que estão presos. E tal contentamento é cultivado pela crença indubitável de que as coisas não podem ser diferentes daquilo que já conhecem. Se alguém lhes apresentar uma alternativa, contestarão veementemente, ao ponto de assassinar o estranho para defender suas convicções reconfortantes, pois Platão diz que se fossem convidados a saírem e olharem para fora da caverna, sentiriam enorme dor ao vislumbrar a ofuscante luz do dia.

Entre as tecnologias atuais, as inteligências artificiais (IAs) podem promover (e já promovem) um agravamento perigoso desse ensimesmamento, pois equipa com muito poder o anseio pela mentira, pela ignorância, aprofundando ainda mais os prisioneiros adentro de suas cavernas e fazendo a luz de alguma verdade superior cada vez mais dolorosa pelo contraste intensificado.

Um dos aspectos das ferramentas de IA é a extrema facilidade em filtrar e selecionar os elementos exatos que uma pessoa deseja — habilidade essa conhecida como machine learning.

Dom - Segunda Temporada

O Google, por exemplo, adivinha nossas pesquisas mesmo antes de completarmos a frase digitada porque seu mecanismo de aprendizagem processa grande parte dos dados acumulados conforme usamos seus serviços. Fica fácil para as grandes empresas recolherem, organizarem e venderem o capital de informações pessoais de seus usuários, sendo isso uma commodity crucial  para o marketing contemporâneo.

Sem percebermos usamos uma internet “personalizada”, onde nenhum site é igual para todo mundo porque eles são quase que feitos sob medida do nosso histórico de buscas, das informações que doamos gratuitamente pela cega vontade por buscar uma vida melhor.

Prontamente as big tech, que recolhem esses anseios, os transformam em matéria-prima para seus produtos que facilmente aderimos porque “alguém” sabe dos nossos sofrimentos e sempre oferece para nós algum produto que tente apaziguá-los (ou melhor, explorá-los).

E essa tecnologia está o tempo todo a dois passos de se tornar um perigo ao promover a possibilidade de vermos e, consequentemente, de nos preocuparmos somente com aquilo que desejamos ver. Como diz Cole Sear, o menino que enxerga a alma dos mortos no filme O sexto sentido, os fantasmas só “veem o que querem ver” porque ainda não estão satisfeitos com sua morte; ainda têm pendências para resolver e, portanto, só se importam com aquilo que lhes libertariam da angústia pela incapacidade de terem suas ações concretizadas no “mundo do vivos”, o qual não possuem mais acesso.

Só nos importamos com as coisas que não temos; só expandimos a nossa preocupação para aquilo que aparentemente guarda o que desejamos e tem o potencial de nos satisfazer. As IAs, com seu poder eficiente de filtrar a realidade, podem tornar as autoilusões imunes a ideias que as contrariem, dado que geralmente só estamos em contato com o que nos é mais conveniente. Sem que haja algo que possa desafiar nossas convicções, perdemos a chance de considerar que elas são falíveis porque sempre é falível o conhecimento humano.

Como consequência, arrogaremos certezas absolutas e uma vaidade extrema que impede qualquer diálogo, qualquer contato com a diferença. 

Isso foi um grave problema (e certamente ainda é/será), por exemplo, durante a pandemia de coronavírus, onde o termo fake news ganhou notoriedade ao observarmos ondas incontroláveis de sofisticadas mentiras compartilhadas, habilmente produzidas e disseminadas pelos "inocentes" recursos de comunicação digital, cujo mecanismo inteligente possibilitava a ampla divulgação de respostas absolutas, infalíveis (e mentirosas), para aplacar as angústias das pessoas em um momento de tamanha insegurança.

Com a inteligência artificial, conseguimos receber um leque de conteúdos totalmente baseado em nossas demandas do momento, expressas pelos conteúdos anteriores que consumimos, o que ocasiona na promulgação da indiferença aos assuntos de ordem pública, dado que o usuário está imerso em seu mundo virtual personalizado.

Se Platão observasse o efeito que as IAs podem gerar no interesse das pessoas pela verdade, ficaria certamente muito decepcionado e desejaria ele beber a dose de cicuta que matou seu mestre Sócrates. Se não, apesar da escuridão, permaneceria convicto a procurar mãos vivas que mesmo ocultas, indicassem olhos abertos.

Nunca antes tivemos a chance de considerar a ignorância como uma bênção, porque nunca antes podíamos ignorar tão bem as coisas que se passam ao nosso redor. E isso é a fórmula para o desastre da vida pública e para o interesse em desenvolver virtudes — a vaidade e a covardia recebem permissão para serem elementos de caráter.

A filtragem que fazemos do mundo, gerada pelo amargo desprezo à péssima vida que cultivamos, faz-nos ansiar cada vez mais que as sombras projetadas na tela do celular sejam de fato a única realidade que experimentaríamos. A ansiedade contemporânea, diferentemente daquela ansiedade vinculada ao futuro incerto que nos aguarda, se forma pela projeção complexa que fazemos de nós mesmos mas que, por ser exagerada, está muito distante de se efetivar. 

Ansiamos pela potência na mesma intensidade em que nos enjoamos com o ato. 

E, então, como não poderíamos encontrar um ônibus lotado de pessoas aprisionadas em seus celulares, que oferecem um reflexo filtrado da realidade amarga que mastigam todos os dias? Como podemos encontrar pessoas corajosas, dispostas a escalar a caverna de suas mentiras e enfrentar a dura existência que não entrega nem ao menos o cinzel para que possamos esculpi-la? Como guardar na memória experiências que não podem ser editadas?

Aquele jovem trabalhador, naquele banal fim de tarde depois do trabalho, estava consternado pela imagem de um ser distante na potência de seus sonhos, concentrando sua atenção para perceber se conseguia visualizá-lo com mais nitidez e, claro, pedindo ajuda para outros visualizadores também tentarem confirmar que o borrão esboçado na tela virtual realmente existe, para que ele não seja apenas uma miragem, um delírio de um desejo insaciado.

O filósofo Platão ensinando seus alunos

Talvez Platão estivesse certo em relação aos prisioneiros: a maioria das pessoas não suporta o brilho da verdade e, portanto, tendo hoje a oportunidade de se acuarem ainda mais na escuridão, dão graças ao poder de “entender” o mundo com as sombras que melhor lhes apetecem.

Mas quanto aos olhos resistentes? Será que tamanha tecnologia pode revelar uma visão mais luminosa da realidade? O que será visível somente através desses filtros?

Aproveite para ver o vídeo do Eduardo Luiz com o Robson Silva falando sobre a Filosofia!
Se estiver recebendo no e-mail e não conseguir ver o vídeo, clique aqui.

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