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Morte e luto – Os segredos do sentido da vida | Karin S. Rotta

 


Parece estranho indicar justamente o que fere a vida como o principal responsável por dar sentido a ela, mas esta é a realidade necessária a ser compreendida: É a morte que dá sentido à vida. 

É só pela eminente perda (e ela materializada) que a humanidade consegue abstrair sentido ao que ainda é vivo.

Ao contemplar toda a existência, conclui-se que a vida é em si mesma um milagre, algo extremamente raro no Universo e na Natureza, portanto. Então, a morte é parte do cotidiano dela, e isso acontece de forma mais frequente do que somos capazes de perceber. 

Quando Aristóteles afirma que cada ser vivo busca seu ponto de repouso em seu lugar natural de origem, se pensamos na realidade humana, nós perdemos este ponto de lugar natural quando fizemos uso da linguagem. Não há ponto de retorno/repouso. Estamos condenados a sermos livres e a lidarmos com o prazer e a angústia que isso nos traz.

Vamos imaginar as situações cotidianas. Todas elas estão diretamente relacionadas com um lidar com a morte. Escovamos os dentes para não perdê-los e por fim não morrermos. Fazemos nossas refeições diariamente para não morremos de fome. Mas se quer pensamos nisso no momento da refeição. Fazemos dela não uma ação preditiva, mas sim uma ação social, descontraída, prazerosa! 

E podemos ir para exemplos mais complexos... inventamos a linguagem oral e escrita para mantermos vivos os saberes e as próprias pessoas de um determinado contexto! Nós mantemos contato social, mantemos vínculos, relacionamentos, para não morrermos psiquicamente. Somos seres relacionais, nascemos da relação (não só sexual), mas o nascimento da psique se dá somente à medida que nos relacionamos com alguém. Estes alguéns que apontarão caminhos à nossa mente para compreendermos tudo à nossa volta a partir da interpretação desta realidade via significação, sentido, linguagem. Atribuímos significado ao que temos contato.

Os relacionamentos possuem importância tão vital à nossa psiquê que, devido ao período de pandemia de Covid-19 que vivemos e ainda estamos vivendo, muitos foram bem mais afetados pelo isolamento social e sua reverberação psíquica do que pelo vírus em si. As demandas familiares e seus conflitos tornaram-se acentuados, o desenvolvimento cognitivo e até motor de muitas crianças apresentou alguns atrasos (segundo estudo da UFPR), o índice de depressão (UERJ - de 4,2% para 8,0%) e ansiedade (UERJ - 8,7% para 14,9%) aumentados por diversas razões decorrentes das perdas de entes queridos, trabalhos, bens, outros, e assim por diante. 

A OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde) chamou a atenção ao aumento de fatores de risco para o suicídio. Durkheim apontou algumas possíveis causas sociais para o suicídio em suas obras, entre elas, crises econômicas, ligação tênue com a vida, descontentamento, e outras causas que afunilam-se às causas principais: anomia, egoísmo (no sentido de isolar-se da sociedade). Nesse processo, os profissionais da saúde se reinventaram juntamente às tecnologias de comunicação, possibilitando proximidade e acessibilidade de seus serviços pelo campo virtual. A procura pela escuta e acolhimento clínicos aumentou significativamente.

A morte é o fim. Brusco, abrupto, grosseiro, sem gosto e sem cor. Desse jeito duro mesmo. É uma imposição de limites. Justa ou não, necessária ou não, ela existe. E ela dita as regras da aleatoriedade da vida e de si mesma.

Com este limite dado, e muitas vezes recebido com desgosto – para ser amena na expressão – resta ao ser humano com complexo de grandeza e infinitude ter que lidar com essa realidade. E a grande questão é... que não sabemos lidar com ela. O melhor que conseguimos fazer é o luto. Luto é a elaboração da perda. É dar um novo significado a tudo aquilo que foi perdido. (E aqui, já estamos falando de perdas diversas... a morte de um ser querido, sim, mas também pode ser a morte de um relacionamento, de um emprego, de uma profissão, de bens materiais, de uma carreira, uma mudança de cidade, uma finalização de algum curso, o fim de qualquer coisa significativa).

Os antigos egípcios criam que, se houvessem suficientes referências dos nomes nas tumbas das pessoas que morriam, quanto mais apareciam, maiores as chances de essa pessoa continuar existindo no além-vida. O mesmo se dá do ponto de vista psíquico... o que/quem foi perdido/morto, continuará existindo à medida que sua presença se manifeste nas lembranças, nas rodas de conversa das famílias, dos amigos, na aquisição de comportamentos peculiares, de seus hobbies, de suas habilidades, valores pessoais, princípios, filosofias de vida... o que se perde continua a existir enquanto ainda faz parte dos que eram próximos, dos ainda vivos.

A morte e o luto gerado por ela, seja de ordem primária ou secundária (como no caso de perdas materiais ou abstratas, como um emprego, um relacionamento, etc.), gera automaticamente na psique uma avalanche de recordações. A saudade é o reconhecimento do vazio outrora preenchido por aquilo que se perdeu. É a dor que fica e que se liga à presença no passado. É a “teimosia” em manter um algo-parte-de-nós não mais possível do passado ao presente. À medida que ela se manifesta numa realidade diferente da original, pode-se parear nossas emoções, na compreensão e aceitação destas a uma realidade nova e cruel.

A realidade propriamente dita é inacessível à psiquê humana. Somos incapazes de absorver em nossa psique a realidade tal como ela é. No máximo conseguimos interpretá-la a partir do uso da linguagem. E nesse processo que acontece a significação do que é o Real. Isso se torna ainda mais complexo com a realidade da morte. Leva tempo e principalmente muito trabalho para que consigamos dar sentido a ela, e consigamos minimamente conviver com a dor e nos fortalecer a ponto de lidar com a existência da falta sem que ela nos desmorone completamente a cada lembrança que nos surpreenda. 

Daí a importância da elaboração de um luto.

Na Psicologia há muito se fala dos cinco estágios de elaboração do luto, tamanha sua complexidade: Negação, Raiva, Barganha (negociação), Depressão, Aceitação. Quem encabeçou a pesquisa deste padrão foi Elisabeth Kuber-Ross, psiquiatra, um dos grandes nomes da Psicologia Hospitalar e Psicologia do Luto, autora do livro On Death and Dying, no qual ela explana estes estágios. 

Hoje, pelos diversos trabalhos clínicos, muitos profissionais constatam que não é sempre que as pessoas enlutadas manifestam estes cinco estágios totalmente e também não necessariamente nesta ordem. O fato é que as emoções não seguem um fluxo organizado de informações como a razão. Então, a elaboração de uma perda, o luto por excelência, acontece de forma randômica, não padronizada, e manifesta-se, e permite-se ao seu trabalho à medida que a psique do sujeito se permite a isso.

Outra consideração necessária para que se entenda o processo do luto – e até mesmo do funcionamento do aparelho mental – é a percepção de tempo. A percepção de tempo psíquico é diferente da percepção temporal real. A psique está na ordem diferente do Chronos (tempo cronológico). Nossa mente se submete ao tempo Kairós, que são as experiências, os momentos vividos. Quando um luto não é bem elaborado, sua dor pode se fazer presente constantemente por tempo indeterminado. Daí as situações de pessoas que, mesmo após 5, 10, 20, 50 anos de perda de alguém significativo, ainda podem sofrer e chorar copiosamente suas perdas, como se tivessem acontecido naquele exato momento. E, como acontece na estrutura de um trauma, a reincidência é um percurso natural da psique humana, na tentativa de COMPREENDER, de DAR SENTIDO, ao que foi perdido, e principalmente à dor do vazio. 

A elaboração do luto é extremamente necessária para a manutenção da saúde psíquica, para que o sentido da vida não esmoreça. E, especialmente, para que aconteça a gestação e o parto do sentido da vida! O nascer é um morrer, tanto para o sentido literal como para o sentido abstrato!

Freud utiliza o termo morte inclusive para tratar de uma das estruturas psíquicas em seu trabalho: a pulsão de morte. Freud vai lançar mão aos termos pulsão de vida e de morte na figuração dos deuses Eros e Tanatos. Eros, na mitologia grega, era o deus do amor e do erotismo. Primeiramente, foi considerado como um deus do Olimpo, filho de Afrodite com Ares, ou apenas de Afrodite, conforme as versões. E Tanatos na mitologia grega, era a personificação da morte, enquanto Hades reinava sobre os mortos no mundo inferior. É conhecido por ter o coração de ferro e as entranhas de bronze. Tânato é filho, de Nix, a noite, e Érebo, a escuridão, filhos do Caos. Tânato é representado por uma nuvem prateada que arrebatava a vida dos mortais. Também foi representado por homem de cabelos e olhos prateados. Seu papel na mitologia grega é acompanhado por Hades, o deus do mundo inferior.

Em sua obra Além do princípio de prazer, Freud explana seu conceito, explicando de forma difusa seu funcionamento. Basicamente, pulsão de morte trata-se daquilo que em nós está fora do jogo da libido (prazer/desprazer). É o que nos mobiliza a investir energia, tanto no ambiente externo da psique quanto interno. É o que te faz levantar de manhã cedo e avançar sobre o maldito despertador, te mobilizando a encarar o dia. 

Alguns confundem o termo com uma simplificação de sua teoria nas observações clínicas de autoagressão. Interpretam o masoquismo, as escarações, as agressões físicas ou mentais contra si mesmo ou contra o outro como manifestações diretas dessa pulsão. E na psicanálise não é bem assim. A pulsão de morte é mobilização. É encarar a vida. E nisso não necessariamente é ir contra ela. A pulsão de morte, portanto, e segundo Christian Dunker - psicanalista, é indutora do processo de sublimação (criação, da dessexualização da libido). A pulsão de morte é aquilo que permite o surgimento de toda a infinita diversidade cultural existente no mundo! Pois elas são desdobramentos da libido. Podemos dizer que elas são trabalhos belíssimos de elaboração do luto. Cultura é compreendida desta forma como um grande trabalho de luto, ponto de vista sociológico.

Freud no texto Mal estar da civilização aponta a pulsão de morte na perspectiva da massa, que consegue ser tão furiosa a ponto de vislumbrar seu sentido de existência em destruir a si mesmo. Em sua experiência, vivendo na própria pele a realidade antissemita, aponta este caminho que a humanidade opta em seguir, de interpretar a morte como um algo pertencente ao amanhã, e que por isso, dá-se a si mesmo o direito e posse sobre ela.

Lacan no Seminário VII, vai procurar desmembrar essa ideia de Freud quanto à pulsão de morte ser algo intrinsecamente ligado ao biológico, à sexualidade física e perpetuação da espécie, para apontar que ela é algo puramente ontológico. Trata-se do conflito originário. A angústia do não-ser/ser. Para ele, na regra de conjuntos, a pulsão de morte contém em si a pulsão de vida. “a sublimação eleva o objeto (narcísico e imaginário) à dignidade da Coisa”. Desejo de um desejo, o desejo em suspensão. Traduzindo aqui para o “português”... É na morte (o não existir) que surge a vida. Artista em sua obra expressa seu ideal de eu, e este é identificado pelo expectador, recriado simbolicamente em si mesmo, causando fascínio, admiração.

Victor Frakl, autor da logoterapia, médico, psiquiatra, em seu livro Em busca do sentido, relata sua experiência pessoal, de ter sido mantido preso no campo de concentração de Auschwitz. Relatos da péssima condição de vida, do sofrimento intenso dos prisioneiros e do próprio autor. Ele narra que quando essas pessoas tinham perspectiva de algo que alimentasse a esperança de um futuro melhor, um objetivo a concluir, um propósito, alguém para reencontrar lá fora, estas conseguiam ter maiores chances de sobreviver. Frankl aponta que existem duas perdas para ao surgimento do vazio existencial: a das Tradições e os Instintos. O autor lista três formas de encontrar sentido à própria existência: Criar um trabalho ou fazer uma ação (social). Experimentar algo ou encontrar alguém. Em condições que ao seu redor não há perspectiva de sentido, o sentido de vida pode ser encontrado em si mesmo, encontrar sentido na tragédia.

Num quadro comparativo, para Freud, a origem das neuroses está na ansiedade causada por fatores inconscientes e conflitantes. Frustração dos desejos sexuais. Já para Frankl, a origem nas neuroses orgânicas está na incapacidade de encontrar sentido e responsabilidade diante da sua própria existência. Frustração do desejo de sentido e significado. Dado este pensamento, Frankl concorda com Nietzsche, que afirma em uma máxima o seguinte: Quem tem um porquê viver suporta qualquer como. Enquanto se tem definido o sentido da vida, o sujeito em questão não se vê limitado pelas adversidades ao seu redor. Há motivo pelo qual seguir, ir em frente.

Por fim, lidar com a morte, elaborar o luto, ressignificar, é o caminho para encontrar o sentido da vida. 

E não há receita pronta para isso. Cada indivíduo precisa encontrar seu próprio caminho de significantes, e neles encontrar seu sentido. O que proponho aqui é que, ao invés de fugir da imagem assustadora da dor da morte, talvez o caminho para encontrar sentido seja encará-la de frente e entendê-la com muito cuidado. Nesse contato que exige seus melindres, pouco a pouco o sujeito consegue encontrar formas de se cicatrizar, especialmente quando este processo lhe incute autoconhecimento e autotranscendência (ir para além de si mesmo, focar no que/quem é externo e extensivo a si). 

Alguns recorrem às suas crenças (religiosas ou não), à filosofia, à arte, à uma nova profissão, à um novo amor, um novo jeito de ser e viver... importante é que se tenha consciência que esta vida é uma só, e o tempo passa, e a morte está lá, lembrando-nos de sua existência, para que se viva bem

Já aproveitando, deixei uma dica muito legal de livro abaixo sobre o nosso assunto do momento. Aproveitem!

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Em Busca de Sentido
Viktor Frankl
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