Ticker

6/recent/ticker-posts

A Inteligência Artificial e a natural burrice humana | por Eduardo Luiz

  


Um enorme desespero tem se instalado com as recentes notícias sobre os feitos da “inteligência artificial” (IA), seja em relação a vida, a arte e a existência humana. É sobre isso e as responsabilidades dos próprios humanos que trata o professor Eduardo Luiz.

O desespero se funda numa legítima sensação de que a “mentalidade” das IAs se tornou superior ao que uma pessoa comum poderia produzir com sua própria inteligência. Sendo assim, a estranheza é fruto da constatação de algo novo, alienígena; a surpresa de percebermos uma força atuante que afeta e altera a nossa experiência de vida.

O medo surgido pela potência tecnológica dessas IAs, vem sendo, na verdade, um bom indicador da crise humana que há muito tempo já condicionamos em nosso estilo de vida Moderno. É comum interpretarmos essa crise a partir das transformações que a Modernidade causou na organização coletiva das pessoas. Até então as antigas narrativas simbólicas, que arranjavam o mundo num sistema metafísico de crenças, davam sentido à condução da vida de um indivíduo, parte desse organismo social, mostrando evidentemente os valores que guiavam suas ações e respondiam às suas angústias.

Mas com o advento do capitalismo e as Revoluções Científica e Industrial, marcas da Modernidade, o mundo humano foi lentamente perdendo sentido, pois as narrativas tradicionais caíam no descrédito em favorecimento das novas crenças e valores da urbanidade Moderna. E quais eram? Produzir e consumir.

Com o tempo, esse esvaziamento simbólico nos destituiu de toda sacralidade, toda ritualística, toda beleza e amparo que nossas metafísicas forneciam, em prol de uma sociedade de mercado que atomiza tudo, numa grande individualização e instrumentalização que não permite relacionamentos interpessoais espontâneos, sinceros e gratuitamente enriquecedores. Tudo passa a ser medido pelo mercado e, com isso, pela objetividade direta sem espaço para as entrelinhas.

Dessa forma, os supostos riscos que essa nova força estrangeira trazida pelas sofisticadas inteligências artificiais, não são tão diferentes dos riscos que este estilo de vida trazido pela Modernidade já causa à vida humana durante séculos. Pois ao tratarmos tudo como uma simples transação objetiva de bens e serviços, sem espaço para o significado que poderia conferir um sentido profundo e anterior aos bens e serviços, as ações humanas passam a não se comprometerem a nenhum fim ético, honesto e justo, não tendo, com isso, um culto a se dedicar para a preservação e evolução da vida.

Daí que o desenvolvimento tecnológico e seus produtos foram patrocinados por uma lógica humanamente leviana, que se preocupa em beneficiar o seu sistema lógico ao invés da vida que dele se serve. A crise humana é o descompromisso da nossa potência como ser, não vertida para a realidade crua e hostil, mas para as fantasias Modernas que tentam substitui-la.

E o que vemos hoje representado na alta tecnologia, é resultado do desenvolvimento da degradação espiritual do ser humano, que sofre pela falta de sentido em suas ações, dissimuladas pela pobreza metafísica das sociedades de mercado, que ao invés de enriquecerem o conhecimento, os valores e os significados humanos dados ao mundo, se prevaleceram da exploração predatória da fragilidade e vontade individuais para o engordamento de seu poder (e de quem goza por ele).

Com as discussões levantadas acerca dos riscos das IAs sofisticadas, as mais chamativas são as que denunciam a extinção de empregos para certos profissionais que se veem substituíveis pela maior eficiência das IAs sobre o seu trabalho. Umas das principais alegações é “o fim da arte” e do trabalho artístico que operam designs gráficos e outros do mercado publicitário, porque há agora programas que conseguem converter instantaneamente uma frase qualquer numa obra inédita, de alta qualidade, com vários detalhes e exatamente como foi descrita. Isso dispensaria os artistas que levam um tempo imenso para esboçar seus projetos, criá-los com técnicas que exigem de si muita destreza e anos de estudo, para que então possam apresentá-los com o risco da dura rejeição do cliente.

Pois bem. A sociedade de mercado opera sob uma lógica de produção e consumo. Não importa o valor simbólico, a carga afetiva ou qualquer outro elemento “irracional” do objeto produzido — importa que ele seja entregue e transacionado. Hoje, quando vemos pessoas ofendidas pela incomparável potência dessas novas tecnologias às suas próprias capacidades produtivas, vemos o quão corrompidas estão as coisas que chamamos de trabalho

Quem sabe nunca o artista produziu para a arte em si, mas disfarçadamente (até mesmo de si) sempre se tratou como mais um comerciante a vender seu produto. E sua revolta é contra a concorrência injusta de uma máquina, não contra o “fim da arte” — o seu medo é sobre sua habilidade de gerar dinheiro, e não de gerar beleza (talvez porque nunca foi sua sincera preocupação).

Parece que a surpresa trazida pelas IAs é que até então não sabíamos que tratávamos a arte como commodity do mercado publicitário, e quando vemos a eficiência de uma máquina a produzir peças gráficas com extrema facilidade, claro que dispensaremos os humanos ineficientes e que bom que temos uma evolução nos seus meios de produção. Afinal, sempre foi esse o negócio, não é mesmo? Não raro vemos por aí novos anúncios de cursos para operar essas ferramentas de IA — e não seria um grande espanto os “artistas” dispensados de seus empregos se tornarem seus principais operadores especializados.

O que devíamos lamentar com a força estrangeira das IAs é o quão nossa própria inteligência está tão empobrecida ao ponto de nos sentirmos inferiores e completamente desesperados pelos impactos de seu uso — e usá-las para as mais pobres e inferiores finalidades. A criatividade humana em muito se hipotecou desde quando decidimos expulsar a nossa latejante vontade para fora da dimensão humana: ter ao invés de ser.

Dizem por aí que as IAs colapsarão a civilização por suas profundas modificações nas estruturas comerciais, afetando principalmente a oferta de empregos e a descontinuidade dos “artesanatos” humanos. Mas isso não é culpa das IAs, e sim da doentia mentalidade contemporânea que estrutura toda sua aparelhagem civilizacional e comercial em função da exploração da miséria humana causada justamente por tais aparelhos.

A pulsão de vida que poderia enriquecer e expandir as competências humanas, foi transferida para as tecnologias e suas máquinas, tornando elas desenvolvidas e sofisticadas em detrimento do ser que as inventou — deus ex machina. Por isso não me surpreenderá se daqui algum tempo inventarem uma “máquina espiritualizada”, mais “humana” do que nós, porque o que chamamos hoje de humanidade é um composto de gente muito, muito pobre; que não consegue produzir potência porque a recusou, preferindo a pusilanimidade e a inércia de nada criar, uma vez que se contenta com os doces que saem da lubrificada máquina de eficiência.

Afinal, assim não é tão difícil algo nos superar...

Eduardo Luiz, filósofo e professor

Aproveite para ver o vídeo do Eduardo Luiz com o Robson Silva falando sobre a Filosofia!
Se estiver recebendo no e-mail e não conseguir ver o vídeo, clique aqui.

Inteligência Artificial X Humanos
Clique aqui!

Você pode ajudar a manter os meus projetos. Para isso, pode comprar livros pelos links indicados ou escolhendo uma maneira abaixo.

:: APOIE-NOS com qualquer valor! 

:: Ou se quiser, FAÇA UMA DOAÇÃO via Paypal: http://bit.ly/DoarJoseAF


Compartilhar:

Postar um comentário

0 Comentários

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...