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O que os filósofos diriam sobre a IA: Aristóteles

 

Essa é uma série para imaginarmos, o que diriam os filósofos famosos sobre a Inteligência Artificial. E começamos com nada menos que Aristóteles e a ideia de potência criativa, a não-realização, a falsidade virtual e a condição humana atual.

Texto de Eduardo Luiz

Certa vez, há cerca de 5 milhões de anos, segundo o que mais recentemente sabemos, habitavam neste planeta alguns animais que, pelo sofrimento das forças do mundo, iniciaram uma linha evolutiva distinta, cujo principal traço foi o uso recorrente da imaginação. Com o tempo, esse recurso se desenvolveu até o estado sofisticado do raciocínio que temos hoje.

Que o usemos agora: imagine a primeira mãe hominídeo numa floresta com seu bando, fugindo daquilo que poderia ser um ataque de predadores. Em uma gritaria imensa, a mata toda se agitava. A mãe desesperadamente carregava a prole perto de si, mas, como seu corpo estava se tornando bípede, seus filhotes tinham muito mais dificuldade em se agarrar no ralo pelo que quase não crescia mais. Na corrida, um de seus filhotes caiu no chão da floresta, ficando à mercê dos predadores que, sem piedade, agarraram o pequeno hominídeo e o devoraram num frenesi selvagem.

A mãe hominídeo conseguiu escapar com o resto de sua prole porque o filhote caído reteve os predadores. Mas quando ela olhou para trás e viu a carnificina que faziam com aquele corpinho que até então brincava em seus braços, sentiu enorme perturbação. Pela primeira vez ela percebeu que não era mais um filhote dentre outros, que não era somente mais um ataque entre vários que já sobreviveu e que isto nunca mais sairia de sua memória. 

Algo especial surgiu naquele evento, pois dentro de si ruminou uma sensação inquietante, revoltante, triste... até que o primeiro hominídeo derramou a primeira lágrima que marcou a existência de um afeto vital presente em nós até hoje: o amor à vida.

Desde então a mente humana começou a tomar os eventos trágicos como grandes sinais, signos que indicavam a iminência da morte, a fim de, pelo medo de perder aquilo que representa a vida da espécie, poder evitar tais caminhos e ao mesmo passo encontrar rumos seguros e prósperos para se investir a caminhada.

Os signos tomados foram se aprimorando na medida em que a consciência se tornava mais sensível, criando significados, significantes cada vez mais complexos, que falavam de perigos cada vez mais detalhados, mais profundos, mais invisíveis. Perigos que nem sequer poderiam obviamente ser vistos como perigos, mas que poderiam se tornar perigosos porque a lembrança da tragédia nos fazia traçar uma certa lógica entre causas e efeitos e presumir se tais curvas do destino levariam novamente ao péssimo desfecho anteriormente experimentado.

Alguns milhões de anos depois da primeira mãe hominídeo ter descoberto a sensação do amor, na Grécia Antiga surgiram algumas pessoas que reverenciaram a importância de conhecer a dinâmica impetuosa da existência, nomeando esse amor pela vida frágil e perecível, como um amor à sabedoria (philo-sophia) — a reverência ao conhecimento que proporciona melhores rumos para a marcha existencial.

Entre esses philosophos, Aristóteles foi um dos grandes pensadores que ofereceu ao mundo humano a linguagem para descrever a dimensão do possível. Dizia Aristóteles que todas as coisas guardam “dentro de si” a potência de serem outras coisas, de se modificarem, quando tal potência é transformada em ato, em movimento.

Consideremos a semente de um grande eucalipto. A semente em si é minúscula, não muito maior do que um grão de areia, mas guarda a potência de ser uma árvore enorme, de várias toneladas, capaz de nos esmagar se alguns de seus potentes galhos caírem em nossa cabeça. Mas podemos dizer, com certo espanto, que tal grande árvore uma vez já coube entre nossas unhas, pois enquanto ainda não era uma grande árvore, ao menos guardava em si a potência de sê-la. 

Aristóteles continuaria a reflexão dizendo que depois da semente ter convertido sua potência em ato, em árvore, agora a árvore crescida tem outra potência latente que, se convertida em ato, por sua vez gerará outro ser que também terá outra potência, outro ato e assim infinitamente, num contínuo fluxo de transformações.

A nossa mente de imaginação aguçada sempre tentou vislumbrar o que pode haver em meio ao escuro da noite, nas nuvens de que se aproximam, no mundo depois da morte... sempre tivemos uma enorme curiosidade, uma curiosidade vital, em tentar prever a potência das coisas que estão ao nosso lado, especialmente a potência de nós mesmos enquanto seres imaginativos.

Muita possibilidade, no entanto, já se converteu em história. O mesmo interesse em imaginar a fortuna que está debaixo de nossos pés fez-nos produzir o Mundo Moderno, repleto de muita tecnologia para tentar enxergá-la, tanto mais para alcançá-la. A inteligência estimulada pela curiosidade desenvolveu-se a um ponto onde hoje temos à nossa disposição ferramentas sofisticadíssimas para propiciar a boa sorte da qual podemos nos servir. 

É verdade que não vivemos mais como selvagens a fugir de caçadas predadoras, porque criamos um campo artificial no qual os perigos da selvageria animal ficam do lado de fora, enquanto desfrutamos de uma sistematizada vida racional que supre “todas” as nossas necessidades. Mas viver submetido a esses sistemas também exige expulsar o selvagem que há dentro de nós mesmos.

Como isso é impossível de modo pleno, embora nos esforcemos cotidianamente em reprimir os instintos que ainda latejam e ruminam em nosso interior, provocando um intrínseco mal-estar, acaba sendo uma tarefa constante termos que converter nossa energia selvagem em algo que não seja da mesma brutalidade primitiva.

É isso que Aristóteles afirmaria ser típico ao ser humano: expressar sua “alma intelectiva”, capaz de produzir um comportamento diferente ao de outros animais pela combinação de seus sentimentos com sua inteligência — capacidade essa chamada de poíesis. O trabalho que constrói algo novo (artístico) sem nenhuma motivação evidente, a não ser a ânsia de vazar o combustível acumulado pela contenção da vontade, explorando sua potência e moldando-a em outros atos criativos.

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O problema é que muito recentemente criamos um estilo de vida onde nos dedicamos a atividades que não permitem essa poíesis. Nosso trabalho produz peças que não nos interessam a não ser que sejam tratadas como dinheiro. Dessa maneira, não nos sentimos realizados, satisfeitos, pois embora tenhamos gastado muita energia, muito tempo, muitas possibilidades de ser e agir, ainda assim não saímos da péssima condição de vida que, na verdade, tende a se agravar por esse emprego de si para uma produção que não seja si mesmo.

Isso gera uma pessoa frustrada — uma sociedade do cansaço. Tanto ato desempenhado, mas pouquíssima potência de ser algo diferente. Dia após dia, semana após semana, ano após ano... e sempre estagnada nas mesmas ideias, nos mesmos comportamentos, nos mesmos prazeres etc. Por que tamanha frustração acumulada não se converte no movimento que pode retirar a pessoa dessa vida infértil?

Pois nossa imensa inteligência pensou que para sustentar sistemas de trabalho estéreis à vida do trabalhador, temos que também criar aparelhos eficientes para dissipar todo estresse que ele acumula com o atrito gerado no conflito entre interesse e obrigação. O mal-estar sentido é convertido em um ilusório bem-estar através do racionalizado lazer: por termos à nossa disposição sofisticados aparelhos para nos distrairmos de uma vida sem gosto, tais aparelhos servem como vazões para as tensões internas. Mas ao mesmo passo que nos distraímos, também desperdiçamos todo o combustível que poderíamos converter em nosso próprio movimento.

Numa ilusória sensação distrativa, nossos equipamentos tecnológicos, que recebem toda a energia negada por nós, passam a se desenvolver enquanto o Eu real permanece empobrecido, buscando desesperadamente consumir compensações para seu ser atrofiado.

E aí então chegamos na mais avançada tecnologia contemporânea: uma inteligência artificial preparada para criar uma realidade paralela, a realidade do virtus, aquela que não aconteceu, que permanece virtual, em estado de potência, de possibilidade — uma realidade que faz aparecer aquilo que não existe, corrigindo a inexistência ao compensá-la por uma simulação.

Umas das ferramentas dessa tecnologia virtualizante é destinada a criar imagens gráficas super-realistas, partindo apenas de um comando escrito (ou prompt de comando). Como nas imagens abaixo, totalmente falsas, com pessoas e formas que só existem em meio virtual, mas que mostram o Papa Francisco em diferentes contextos muito improváveis.



“Como seria se...” o Papa Francisco, que permeia o imaginário popular como o representante mais próximo da divindade, resolvesse cair na tentação, tal como caem muitos outros fiéis, e fosse encontrado na balada, cometendo, aliás, os mesmos pecados que os meros mortais cometem? Será que a imagem do sumo pontífice entregue aos prazeres carnais, conforta a consciência pecadora das pessoas?

Chegamos a uma condição humana tão perigosamente pobre, mas equipada com um poder tecnológico sofisticado, onde podemos vislumbrar, dada nossa curiosidade natural, como seria se o estado degradado da vida fosse diferente.

As inteligências artificiais nos permitem ver (e moldar) as sombras de um universo melhor, mesmo que fantasmagórico. No entanto, ao fazerem isso, passam a realizar em um falso ato a potência que não se converte no Eu verdadeiro, porque este desperdiça todo seu combustível de mudança justamente na própria tecnologia.

Podemos perceber, pela complexidade das simulações, que ao invés de inspirarmo-nos nas projeções virtuais e tomá-las como incentivos para a vida, contentamo-nos com a falsa realidade projetada

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Na medida em que nos alegramos com o perfil construído na internet, cheio de sucesso, beleza, sedução, felicidade (e tudo mais que está apenas em potência), perdemos o interesse (estima) sobre o rosto frustrado que está por trás da tela, mas que é (e continuará sendo) real apesar de todo simulacro sobre si.


O que diria Aristóteles sobre essa alegria? 

Será que ele condenaria o fato de que, entre as diversas potências humanas, preferimos criar um mundo simulado para que possamos lá, na mentira editável, ostentar as falsas qualidades que não conseguimos desempenhar na vida real? E será que nossa primeira mãe hominídeo, cuja memória trágica de ver seu filhote devorado, confiaria se sua imaginação lhe prometesse uma vida mais feliz apenas por acreditar que tal acontecimento não foi de fato terrível?

Ao nos contentarmos com a mentira virtual, deixamos de considerar a tragédia como uma tragédia e, com isso, perdemos a oportunidade de conhecer os caminhos cujo destino é a morte — e tampouco conhecer os caminhos que levam à vida. 

Sem estendermos a sensibilidade de nossa imaginação sobre o mundo real, ignorando-o pela virtualidade distrativa, é possível que nosso dote evolutivo tão vital deixe de ser aguçado, fazendo-nos dependentes de uma baixíssima precisão sobre a realidade ao cada vez mais preferirmos o delírio em seu lugar — a perda do amor à vida.

E, como uma vontade cega, resta-nos cuidar para que tal desprezo pela realidade não faça da vida uma possibilidade extinta, nunca realizada. Eis, então, o desafio crucial de nosso tempo virtual: tornarmo-nos reais. 

Aproveite para ver o vídeo do Eduardo Luiz com o Robson Silva falando sobre a Filosofia!
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