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Cantigas medievais - Vós que soedes em corte morar




Esta cantiga foi feita no tempo do rei Dom Afonso, a seus privados. Trata-se de um diálogo muito crítico sobre os conselheiros reais.

Vós que soedes em corte morar,
desses privados queria saber
se lhes há privança muit'a durar:
ca os nom vejo dar nem despender,
ante os vejo tomar e pedir;
e o que lhes nom quer dar ou servir
nom pode rem com el-rei adubar.
  
Destes privados nom sei novelar
senom que lhes vejo mui gram poder
e grandes rendas e casas ganhar;
e vejo as gentes muito emprobecer
e com probeza, da terra sair;
e há el-rei sabor de os ouvir,
mais eu nom sei que lhe vam conselhar.
  
Sodes de cort'e nom sabedes rem;
ca mester faz a tod'homem que dé,
pois à corte por livrar algo vem;
ca, se dar nom quer, por end'escass'é;
pense de dar, nom se trabalhe d'al;
e se nom der, nom pod'adubar al,
ca os privados querem que lhes dem.

Sobre a cantiga:

Diálogo muito crítico sobre os conselheiros reais, travado entre dois interlocutores que, ao contrário do que é norma nas tenções, não são nunca nomeados. Até por este motivo, a cantiga levanta alguns problemas de autoria, não completamente elucidados.

De facto, a composição surge duas vezes nos apógrafos italianos: uma primeira vez, na secção das cantigas de amigo de ambos os cancioneiros (B e V), aí sendo atribuída a Martim Moxa; uma segunda vez, só em V (na secção das cantigas de escárnio), aí sendo atribuída a Lourenço (e acompanhada da rubrica que transcrevemos). 

Procurando solucionar este problema, e uma vez que a composição é claramente um diálogo, Carolina Michaelis sugeriu que se trataria de uma tenção entre Martim Moxa e Lourenço, opinião que foi sendo seguida por todos os editores posteriores (o rei citado na rubrica podendo ser, neste caso Afonso III ou mesmo Afonso X). 

Mais recentemente Resende de Oliveira, baseado em razões com algum peso (entre as quais se pode destacar o facto de a composição vir, na segunda transcrição de V, imediatamente antes da obra do conde D. Pedro de Barcelos, e haver, neste passo do cancioneiro, alguma flutuação nas rubricas atributivas), sugere que ela deveria, de facto, incluir-se na obra do Conde. 

A crítica aos privados reais é, na verdade, um tema não só retomado por D. Pedro e pelos trovadores e jograis do seu círculo, como é um tema que, nos Cancioneiros, parece ser exclusivo desta época mais tardia da poesia trovadoresca. Tavani, no entanto, discorda desta opinião e crê que a atribuição a Martim Moxa, indicada pelos Cancioneiros, deverá continuar a prevalecer. A notória preferência deste trovador pelos temas morais, muito coincidente com o tom que encontramos nesta composição parece, de facto, um ponto a favor desta opinião. 

Já o facto de ser eventualmente Lourenço o interlocutor de Martim Moxa parece pouco consentâneo com o perfil da restante obra que nos chegou deste jogral. Assim sendo, tendo em conta a longevidade atribuída a Martim Moxa por uma cantiga do nosso corpus e também a alusão a este trovador que encontramos numa cantiga de João de Gaia (trovador do círculo de D. Pedro), uma hipótese intermédia a considerar seria a de considerarmos exatamente D. Pedro o interlocutor de Martim Moxa (neste caso, sendo o rei citado na rubrica D. Afonso IV). O problema permanece, no entanto, em aberto. 

Com todas estas reservas e incertezas, incluímo-la, pois, na obra de Martim Moxa, mas dando o estatuto de "anónimo" ao seu interlocutor. 


Acrescente-se ainda que, para além de não ser igualmente seguida outra das regras da tenção (o mesmo número de estrofes a cada interlocutor), também não é claro quem inicia o diálogo e quem responde. Note-se finalmente que a cantiga apresenta algumas variantes nas três versões (que indicamos nas notas).


Pauta da recriação moderna


Manuscrito da canção e sobre ela



Fonte: Cancioneiro da Biblioteca Nacional - B 888, V 472=1036


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